Archive for the ‘plataforma das companhias’ Category

Agiotas e bastardinhos

Domingo, Junho 10th, 2012

Abel Neves

Isso queriam eles! Os agiotas e os bastardinhos até podem ser personagens no teatro, mas nunca serão património da humanidade como Édipo, Hamlet, D. Quixote, Woyzeck ou as almas d’ A gaivota.

Isto vai escuro. Alguém terá, uma vez mais, de iluminar e restaurar as paisagens – a humana e as outras, que outros andam a desgraçar – e refazer a  caminhada. E para isso também cá estamos nós, os das artes do espectáculo, os teatreiros, apesar de tudo convencidos de que numa ou noutra hora mais expedita seremos capazes de esclarecer os imbróglios e dar alento à possibilidade de um qualquer milagre – que sabemos poder acontecer no teatro – que dê ânimo à ideia de uma comunidade mais disponível para os diálogos em volta das éticas e das belezas que há por aí, mas que alguns teimam em querer obscurecer.

Os agiotas têm poder. Gostam de esconder-se nas suas cavernas de troglodita vendo por controle remoto a evolução das suas usuras e até que as suas cabeças rolem, terão poder. Eles e os bastardinhos. É lindo de se ver: os agiotas atiram as bolinhas e os bastardinhos correm a buscá-las.

Os bastardinhos são uma espécie de quadrúmanos que praticam a sabujice nuns degraus abaixo do patamar onde os agiotas acumulam os seus metais brilhantes. São os organizadores da desdita mais recente que nos coube em sorte e sempre cumprindo zelosamente as ordens dos crápulas do luxo. Agiotas e bastardinhos convivem neste mundo como nós, e do teatro querem saber muito pouco, ou melhor, querem lá saber do teatro! Ou melhor ainda: o teatro que s’ afunde! O teatro e o resto. Que falta fazem os outros, os artistas e a cultura? Houve tempo em que se pensava, e defendia, que as acções humanas concorriam para a cultura, mesmo em plena guerra. Era simultaneamente um meio e um fim. Hoje, na teia de neurónios ressequidos dos agiotas ainda existirá uma ideia de cultura, mas dominada por um aparato arbóreo: a árvore das patacas. Os camaradas usurários, também quadrúmanos, têm evoluído atrás do cheiro do dinheiro, é com ele que estrumam a vida e certamente esperam que um dia, na falta das couves e batatas, possam trincar e mastigar notas e moedinhas. Bom alimento será.

Socorro-me, ainda e sempre, de um fragmento de Heraclito, o antigo filósofo pré-socrático: “o burro prefere a palha ao ouro”.

Dantes, as crises eram crises, pronto, e mostravam-se no teatro como lugar de eterno retorno. As obras teatrais anunciavam a consumação de honras e vergonhas, esclarecendo e aliviando a humanidade sedenta de deuses e heróis. A novidade da crise actual é que se trata de terrorismo financeiro. Tem um perfume acentuado a extermínio, procurando disciplinar e domesticar a vida das pessoas e, se possível, exterminar os indesejáveis.  Ora, nós, no teatro, até gostamos de afirmar a austeridade, mas auto-imposta, igualzinha à autoridade, e que a poesia afirma como liberdade. Assim, podemos compreender porque gostam os agiotas-dos-neurónios-mirrados de ver o teatro como um retiro para entreter a banalidade ou uma ruína exótica para estimular algum turismo.

Como é que nós no teatro podemos lidar com essa gente que executa o terror financeiro? É simples: já que não temos, não teremos nem queremos o poder que eles têm é -com todas as letras- mandá-los à merda. Nenhuma palavrinha deselegante é mais incómoda do que a desgraça que fazem viver a tanta gente. É mandá-los à merda, sabendo que eles já nos mandaram a essa parte há muito tempo. Ficamos quites, mas nós com a graça iluminada das personagens que nos cumpre fazer viver nos teatros e eles pintalgados de esterco nas conferências executivas da finança. Como diria o Mestre Salas da família dos Bonecos de Santo Aleixo… uns filhos da púcara!

Para mal dos pecados de agiotas e de bastardinhos, o teatro irá continuar. Por muito que lhes custe, iremos manter aceso o lume teatral. Os gregos – sempre os gregos! – inventaram esta coisa duradoura de estarmos num lugar escolhido por todos, uns diante dos outros contando e recontando as narrativas da alma e por isso seguiremos adiante. Continuaremos a herança de Epidauro e certo é que outros, mais tarde, irão fazê-lo também. Os encontros no teatro têm mistério suficiente para essa fé que acrescenta humanidade ao humano, e que nem precisa de ser crença religiosa: basta-nos aceitar as imperfeições de que somos capazes e procurar que se ajustem a uma imperfeição maior e mais acima onde imaginamos que, pouco a pouco, se incendeiem e regressem à perfeição original. Aí estaremos no lugar-que-não-é-lugar, paradoxalmente, o lugar de todas as utopias: o teatro.

Acreditemos então que esta crise é apenas mais uma, das muitas que têm vindo a fazer a geografia humana, umas mais sombrias do que outras, todas fazendo parte da dificuldade que é compor a vida. Sabemos quem são os autores desta barbaridade contemporânea, embora queiram insinuar-se sem rosto, e isso já é muito. Poderemos sempre apontar-lhes o dedo e acusá-los de crimes contra a humanidade. No teatro serão, obviamente, condenados. Fora do teatro, não sabemos.

Escutem… não ouvem o eco festivo das antigas vozes de Epidauro?

V Festival das Companhias, Évora, Junho de 2012

Abel Neves

(intervenção de abertura no debate “O Teatro em tempo de crise”,

no V Festival das Companhias da Descentralização, 9/06/2012)

último dia

Sábado, Junho 9th, 2012

E assim termina o V Festival das Companhias: um debate à tarde sobre “O Teatro em tempo de crise” (16h00) e o espectáculo do Teatro de Montemuro.

Obrigado, Cendrev!

9 de Junho, sábado, 21h30

Teatro Garcia de Resende, Sala Principal

Louco na Serra

Teatro do Montemuro

Debaixo de uma tempestade na Serra de Montemuro três homens recordam os eventos do ano anterior e a queda de Leandro e da sua família no caos.

Leandro é um proprietário rural com três filhas: Rebeca, Gabriela e Constância. Leandro decidiu não continuar a cultivar as suas propriedades, de modo a poder reformar-se e a deixar que as suas filhas e os respectivos maridos giram a propriedade. Num momento de puro capricho, ele decide dividir a terra de acordo com o amor que as suas filhas possam demonstrar por ele.

“Louco na Serra” faz-nos caminhar sobre a frágil barreira entre a civilização e a selvajaria. Ira, traição, inveja, delírio, medo, loucura, vingança, morte, crueldade, compaixão.

texto Peter Cann e Steve Johnstone tradução José Miguel Moura encenação Steve Johnstone direcção musical Simon Fraser cenografia Andrew Purvin construção de cenários Carlos Cal assistência à cenografia Maria da Conceição Almeida interpretação Abel Duarte, Eduardo Correia, Paulo Duarte costureiras Capuchinhas CRL e Maria do Carmo Félix desenho de luz Paulo Duarte

M/12 > 1h20

 

diário do festival (4)

Sexta-feira, Junho 8th, 2012

Se não fosse por mais nada, o VATe – Serviço Educativo da ACTA distinguir-se-ia pela forma como se apresenta e faz transportar: num autocarro transformado em teatro que anda há anos a encantar miúdos e graúdos pelas terras algarvias. Por estes dias, está estacionado ao lado do Teatro Garcia de Resende. As portas foram abertas ao público de Évora pela primeira vez hoje de manhã, com uma sessão da peça “A mais louca história da aviação”, para cerca de meia centena de alunos do pré-escolar e do primeiro ciclo.

Independentemente do nome que cada uma lhes dá, o VATe é o mais exuberante exemplo de um conjunto de actividades desenvolvidas por várias companhias de teatro (incluindo todas as que participam neste festival), visando o alargamento e a formação de públicos: acções de formação para alunos, para professores, para alunos e professores, para grupos de amadores, para estudantes universitários, para o público em geral; leituras; visitas guiadas; conversas com os artistas; conferências e debates; ciclos de cinema; intervenções na rua e em espaços não convencionais (o espectáculo da ACTA estreou junto aos balcões do check-in do aeroporto de Faro); documentários; edições.

Fazem-no há muitos anos. Por interesse próprio e por interesse público, num país cuja taxa de analfabetismo ronda os 10% e onde ir ao teatro ou ler um livro são extravagâncias na vida da vida da maior parte dos cidadãos.

Têm-no feito sem o apoio do Estado, que se limita a incluir estas actividades (cada vez mais) entre as contrapartidas obrigatórias pelos apoios que dá (cada vez menos) à criação artística. Pior: têm-no feito contra o discurso e a prática dominantes nas instituições públicas, que não só não fazem o que lhes compete nesta matéria (na articulação com o Ministério da Educação, por exemplo), como objectivamente afastam públicos das salas de teatro de cada vez que insinuam, acusam ou deixam que se acuse aqueles que financiam de serem subsidiodependentes ou “mendigos de chapéu na mão”. Que adiantam a retórica oficial sobre a importantíssima relevância da cultura, os prémios e as honras balofas em dias de festa quando o Estado que os atribui é o mesmo que viola contratos assinados, aplicando cortes de 40% em financiamentos atribuídos e que nada diz sobre o que pretende fazer daqui a seis meses, deixando paralisadas e agonizantes dezenas de estruturas profissionais? Como pode o Estado querer que os cidadãos se importem com a criação artística se ele a espezinha desta maneira?

E, no entanto, a responsabilidade continua a cair sobre nós. Se não temos públicos suficientes nem dispostos a pagar os custos da nossa actividade, o problema é nosso, que não sabemos cativá-los.

Seria demagógico, irresponsável, improdutivo e (em alguns casos) injusto referir aqui as taxas de abstenção nas eleições que legitimaram o poder dos governantes que assim pensam e agem.

Não o faço a sério, portanto. É apenas para responder à letra.

Pedro Rodrigues

Évora, 8 de Junho de 2012

anterior          seguinte

 

Luís Vicente citando Churchill: “estamos a fazer esta guerra para quê?”

Sexta-feira, Junho 8th, 2012

Luis Vicente faz hoje dois espectáculos em Évora, no Festival das Companhias da Descentralização.

Eis o artigo que escreveu – sob a forma de carta a um amigo – para a terceira edição do Jornal das Companhias.

Luís Vicente em "Cavalo Manco Não Trota", de Luis del Val (foto: Carlos Sousa)

Caro Pedro,

Pedes-me um artigo de opinião. Não sei que te diga. Terei eu opinião que conte para alguma coisa significativa nos dias que correm?! Contou para alguma coisa significativa a minha opinião nos últimos anos?! Não fizeram sempre os políticos – a generalidade deles – exactamente aquilo que lhes dizíamos que não deviam fazer?! Não andámos nós a desgastar-nos, literal e absolutamente para NADA?! Conheces hoje algum político que se disponibilize um minuto para nos ouvir e reflectir sincera e empenhadamente acerca do que possamos dizer?! Tem entre nós a Cultura em geral, e a Arte do Teatro em particular, alguma importância nos tempos que correm? O Teatro que fazemos – numa perspectiva cultural, claro está, e não numa perspectiva de mero divertimento – serve para quê?!

Vivemos tempos em que tudo é descartável; tempos em que só a linguagem dos números vinga nos mais sérios e graves discursos televisivos – não há peru que não seja comentador de desgraças ou vendedor de elogios. Sófocles?!, Shakespeare?!, Gil Vicente… para quê?! São tão bonitos os mercados (Carlos Abreu Amorim, sic). Em quantos políticos de hoje encontramos nós um discurso coerente, sólido, estruturado e substancial fora dos parâmetros do lodaçal dos mercados?! Quantos lêem Dostoievski ou Saramago?! Quantos vemos nós no Teatro?! Em quantos identificamos profundidade e elevação no entendimento da coisa cultural?!…

Conta-se que quando Churchill convocou a Inglaterra para um redobrado esforço de guerra, a fim de avançar com medidas que no plano bélico eram tidas como imperiosas para a sobrevivência dos ingleses e dos povos europeus face aos avanços da besta nazi, terá sido abordado pelo responsável da Cultura do seu governo que lhe terá dito, conformado, “Lá vamos ter de cortar na Cultura!”, ao que Churchill terá respondido: “Nem pense nisso, homem! Então, estamos a fazer esta guerra para quê?!…”.

Nos tempos críticos que correm – no contexto dos quais fomos nós, agentes culturais, os primeiros a sofrer as consequências e os mais duramente penalizados – de quantos políticos portugueses podemos esperar o tipo de entendimento que Churchill expressou?!

Embora Churchill não soubesse (da fonte segura que hoje o sabemos nós, graças às neurociências) que o homem partilha com o chimpanzé a consciência do Ser, sabia, no entanto, que o chimpanzé não compartilha com o homem a consciência do Saber: não escreve, não pinta, não dança, não esculpe, não representa, em suma, não cria – desconhece, portanto, o que seja Arte e Cultura.

Churchill sabia da importância da Arte e da Cultura, designadamente para a construção do edifício do Saber, e que tal património é exclusivamente humano. Sabia que o que nos distingue do chimpanzé – que é bicho que pertence à categoria taxonómica que nos é mais próxima – é ser impossível descodificarmo-nos e compreendermo-nos sem o Saber que nos proporcionam a Arte e a Cultura. Sabia que sem Arte e sem Cultura não haveria Humanidade, o homem não seria o Homem.

Entre nós, de quantos políticos podemos dizer o mesmo? – é uma pergunta de retórica, não vale a pena responderes.

Luís Vicente

o dia da ACTA

Sexta-feira, Junho 8th, 2012

A ACTA – Companhia de Teatro do Algarve ocupa o dia inteiro do Festival de Évora, com três espectáculos diferentes.

Começa já às 10h30 da manhã, com “A Mais Louca História da Aviação”, espectáculo apresentado em substituição de “De Ulisses nunca digas tolices…”, por motivos de saúde de uma das actrizes.

À tarde, Luis Vicente apresenta o monólogo “Cavalo Manco Não Trota” na sala-estúdio do Garcia de Resende e às 21h30 o mesmo Luis Vicente, agora com Mário Spencer, oferece ao público “Laço de Sangue”.

Não perca!

8 de Junho, sexta-feira, 18h30

Teatro Garcia de Resende, Sala-estúdio

Cavalo manco não trota

ACTA – Companhia de Teatro do Algarve

No momento em que o Juiz pergunta se o réu se considera culpado ou inocente, Miguel Torres é remetido, num ápice, para um turbilhão de memórias que começam na infância e terminam no momento e na circunstância em que agora se encontra, volvidos quase quarenta anos.

Os conflitos de infância, a fuga de casa dos pais, a juventude de um estudante de origens humildes na universidade e depois como marinheiro, os amores impossíveis e os amores destruídos, o seu desempenho como construtor civil corrupto… a morte do filho. Tudo é convocado para um “ajuste de contas” pessoal, a um tempo divertido, irónico e amargo.

texto Luis del Val tradução Maria João Neves encenação Bruno Martins intérprete Luís Vicente desenho e operação de luz Octávio Oliveira espaço cénico Luís Vicente figurino ACTA

M/16 > 1h20

8 de Junho, sexta-feira, 21h30

Teatro Garcia de Resende, Sala Principal

Laço de Sangue

ACTA – Companhia de Teatro do Algarve

Laço de Sangue conta a história de dois irmãos, filhos da mesma mãe, um de pele clara e outro de pele escura, que, procurando aliviar o tédio das suas existências, compram um jornal para que Zach, de pele escura e analfabeto, possa tentar arranjar uma correspondente do sexo feminino. Emerge então a África do Sul sob o apartheid, num jogo perigoso que põe em cena o drama da barreira de cor, com todos os seus medos e ódios. Metáfora da segregação racial então vigente na África do Sul, Laço de Sangue usa a consanguinidade entre irmãos para falar do nó de sangue entre todos os homens – um laço quebrado pela consciência tornada supremacia de uma raça (ou etnia, ou casta) sobre as restantes.

texto Athol Fugard tradução/revisão António Marques/Luís de A. Miranda encenação Luís Vicente intérpretes Luís Vicente e Mário Spencer concepção plástica Luís Vicente execução cenográfica Tó Quintas assistência de encenação Bruno Martins desenho e operação de luz Octávio Oliveira sonoplastia e operação de som Pedro Leote Mendes

M/12 > 1h10