Augusto Baptista – Um Leonardo do Nosso Tempo
Caleidoscópio de talentos e de caligrafias, de sarcasmos e de encantamentos, de minúcias e de inquietações, de reflexão aturada e de concretização obsessiva, a inventiva ímpar de Augusto Baptista era, até agora, um dos mais bem guardados segredos da Cultura Portuguesa Contemporânea. Aflorando apenas alguns dos seus trabalhos, vou tentar sistematizar a sua multifacetada criação, em cujo cerne, mesmo quando não parece, está sempre ‘o homem que’.
Ao passear o olhar pelo “foyer” deste Teatro da Cerca de S. Bernardo, sem nunca perder a sua assinatura firme, aquelas fotografias do Porto conduzem-nos a memória para nomes lendários: os ambientes que Sudek registou em Praga e Stieglitz em Nova Iorque; o padrão de empredrados parisienses de Brassaï; a elegância na composição de Kertész; a profundidade de campo de Cartier-Bresson; os ângulos inusitados de Rodchenko. Da série exposta por detrás do cenário deste espectáculo-instalação de A Escola da Noite – sobre o qual não me vou pronunciar, porque, em tarde de Shakespeare, não se enaltece Stanislavski…. – é quase impossível não fazer a comparação entre ‘Vinte Rostos Dois Mil Anos’ e as 60 fotografias da mítica compilação de August Sander, ‘The Face of Our Time’.
A partir da sua vasta obra gráfica, numa filiação ‘a posteriori’, podíamos inserir Augusto Baptista no rol de caricaturistas e de ilustradores como Carlos Botelho e Tóssan, Sampaio e Miranda, Sam e Brito. Mas nenhum destes nomes, bem inscritos na História da BD e do Cartoon em Portugal, tem uma produção tão variada e imaginativa como a do criador de ‘Humor das Multidões’. Para encontrarmos um paralelo temos de ultrapassar fronteiras – e, mesmo assim, é difícil. Atrevo-me a dizer que, tanto no traço como na jocosidade, ‘Rabo de Gato’ é melhor que ‘Portée de Chats’ e que ‘Je ne Pense qu’à Chat!’, dois tomos de Siné, um dos mais famosos cartunistas franceses. E na diversidade do riscar, na originalidade conceptual, na capacidade de subverter os cânones – tão presente nos livros ‘Moustache’, ‘nonsense’, ‘Garrafas’ – só lhe encontro semelhanças com Sergio Aragonês, “rabiscador” das vinhetas na margem das páginas da revista ‘MAD’. Mas, confrontando os desenhos e a “filosofia”, continuo a preferir o Augusto Baptista.
Depois, há a escrita – e os seus múltiplos usos. No jornalismo como na ficção, caracteriza-se pela escolha da palavra precisa, exata, diria mesmo definitiva – isto é, nenhuma outra exprimiria melhor uma situação, uma paisagem, um sentimento, uma desgraça, uma ternura. E, nos seus textos pontuados com máximo rigor, nunca há um termo a menos, nenhum a mais!
Ao fazer uma recensão sobre ‘Histórias de Coisa Nenhuma e outras Pequenas Significâncias’, para o ‘Diário de Notícias’, não hesitei em estabelecer uma conexão com ‘Contos do Gin Tonic’. Nos títulos seguintes – beneficiando de um atento ouvido para o linguarejar do quotidiano, de uma pupila treinada para captar o absurdo do dia a dia, de uma apetência para desconstruir adágios –, este “brincante” das letras e dos significados transforma tudo com o seu peculiar lirismo ácido.
Além de Mário-Henrique Leiria, na nossa cultura, podemos encontrar outros vínculos com a sua cornucópia de bizantinices, desmesuras, “desmaranhos de turundundum”, desconsertos, espantos, paradoxos: as trovas de escárnio e maldizer, muitas réplicas vicentinas, certos versos de Nicolau Tolentino, trechos de ‘Arte de Furtar’ (do Padre Manuel da Costa), muito Alexandre O’Neill, algum Miguel Esteves Cardoso. E, tanto no labor da investigação das entranhas das palavras como nas páginas do que se designa como “poesia visual”, há claras afinidades entre Augusto Baptista e Alberto Pimenta.
Se os ‘haikus’ de Matsuo Bash? e de Kobayashi Issa nos deixam a pensar de forma séria, como quem acaba de receber uma certeza, os enigmas de Augusto Baptista, depois do sorriso ou da gargalhada, obrigam-nos a meditar nesta língua traiçoeira, multiplicando-nos as dúvidas a partir de lugares-comuns. Na subtileza cáustica destes desafios – a que chamaria uma espécie de “anti-aforismos” – temos mesmo de convocar outras literaturas, pois o autor está mais próximo da acutilância de um Karl Kraus ou da graça de um Oscar Wilde. E, ao lermos ‘O Caçador de Luas’, além de nos deliciarmos com imaginários que vão do burlesco ao onírico, das questões fulcrais do existencialismo até aos delírios do surrealismo, somos sempre surpreendidos com um remate imprevisto – quase à maneira de Roald Dahl. Sem nunca se repetir, coloca-me, tantas vezes, na posição de ter de fazer uma incómoda escolha: por exemplo, entre o seu ‘Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos’ e o ‘Dicionário do Diabo’, de Ambrose Bierce, o meu coração e o meu cérebro balançam.
Ainda no domínio das letras impressas – numa pátria com excesso de rimadores e míngua de pensadores –, a Augusto Baptista nem sequer falta a dimensão do ensaísta, autor de ‘Floripes Negra’, cujos méritos espero venham a ser reconhecidos pelos académicos (amanhã ou dentro de vinte anos!), pois este livro devia integrar a bibliografia obrigatória em áreas do saber que vão da Antropologia Cultural até aos Estudos Teatrais.
Naquele território lúdico que não domino – o do artífice-engenheiro, o do geómatra-arquitecto, o do inventor de combinações desse “puzzle” chamado “tangram” –, prefiro citar o americano Jerry Slocum (afinal, é o maior colecionador de quebra-cabeças do universo e uma sumidade na matéria), que nos garante que, desde que o jogo surgiu na China durante a dinastia Sung (960 – 1279), “ninguém – em todo o Mundo – criou tantas e tão bonitas figuras-problema como Augusto Baptista”. Provavelmente, se o planeta culto conhecesse o resto da sua mundividência, multiplicar-se-iam “sentenças” como esta de Slocum.
E concluo – pedindo, obviamente, alguma benevolência para este único exagero do meu testemunho – afirmando que estamos perante um… Leonardo da Vinci do nosso tempo!
Fernando Madaíl, Junho de 2019
(intervenção na conversa sobre a obra de Augusto Baptista, Coimbra, Teatro da Cerca de São Bernardo, 22 de Junho de 2019)