Declarações do autor sobre a sua obra

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Cándido Pazó

Um pedreiro ou um arquitecto pode partir da visão integral do edifício que quer construir. Mas também pode partir da consideração dos materiais concretos que tem à mão – as pedras, os tijolos – com que quer trabalhar. Comigo, aqui, o que se passou foi que primeiro deparei-me com a história, que aconteceu numa reunião de condomínio: um proprietário protestava pela presença de uma canoa num lugar de garagem – protestava, portanto, pela quebra de uma norma não escrita mas que ele considerava importante.

A partir desta história, a própria realidade convidou-me a fazer algo que falasse de violência de género, da violência doméstica, criando uma personagem que não quer que se quebrem as normas eternas, que vêm da noite dos tempos, porque está habituado a viver com essas regras do jogo. Assim, podia tratar um tema grave de uma maneira dinâmica, de forma a que as pessoas que viessem ao teatro tivessem o prazer que sempre devem ter ao contemplar uma peça e, ao mesmo tempo, o estímulo para pensar sobre o que está a ser contado. Resumindo, podia abordar um tema central como é a violência de género de uma maneira periférica, utilizando o humor que a vida sempre nos oferece, mesmo em torno das situações mais dramáticas.

Tanto a história da canoa como a sua paixão pela leitura do dicionário, como livro morto, permitiram-me caracterizar Delio. O dicionário – falo dele com todo o respeito (eu sou filólogo, e também o leio) – pode ser uma ferramenta dinâmica ou exactamente o contrário, como neste caso. Delio entende o dicionário como uma espécie de código civil onde se diz que nome têm as coisas e, em geral, o seu comportamento perante a leitura é do mesmo tipo: ele lê panfletos onde se diz como se usa isto, lê catálogos onde se diz o que é isto. Delio entende a essência das coisas como algo fixo, estabelecido e escrito.

A transição entre momentos violentos e calmos é assumidamente brechtiana. A influência de Bertolt Brecht está presente de uma forma mais do que evidente: os actores falam com o público a todo o momento. O que pretendo com a representação destas cenas é transmitir a ideia de que nem sempre conhecemos a realidade, antes a interpretamos, a pressupomos, especulamos sobre ela sempre a partir de uma convenção social, conjuntural e não a partir do conhecimento real dos factos. Também me interessa que o público respire e possa retomar o discurso e divertir-se com a peça. Brecht dizia que devemos ir ao teatro para nos divertirmos. Não quero apenas uma chave emocional, mas também racional – recuar, avançar, voltar, retornar. É um pouco como a técnica de pescar trutas: se estás sempre a puxar o fio, este acaba por se partir – por isso solto-o de vez em quando. Se as cenas fossem construídas para forçar as emoções, não ajudariam a pensar mas apenas a sentir. Eu não tenho nada contra que se sinta, mas necessito de combinar as duas direcções: pensar-sentir, sentir-pensar.

Cándido Pazó, in Ánxela Gracián, A Piragua – Caderno Pedagóxico. Santiago de Compostela: IGAEM / Centro Dramático Galego, 2007; p. 4 [tradução: Pedro Rodrigues]

 


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