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Bernardes em Bragança: “Gil Vicente convida-nos a sair do nosso tempo”

Quarta-feira, Janeiro 11th, 2017
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António Augusto Barros, José Bernardes e Helena Genésio, directora do Teatro Municipal de Bragança

José Augusto Cardoso Bernardes, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, proferiu ontem em Bragança a conferência “Gil Vicente no seu tempo e no nosso tempo”. A iniciativa assinalou o arranque da mini-temporada que as companhias A Escola da Noite e o Cendrev realizam esta semana no Teatro Municipal de Bragança, com a co-produção “Embarcação do Inferno”.

Referindo-se aos desafios que a obra de Gil Vicente coloca aos espectadores de hoje, 500 anos depois da época em que foi escrita e apresentada, o prestigiado vicentista reconheceu “a estranheza” que as peças de Vicente podem colocar aos artistas e aos espectadores contemporâneos. Para lidar com ela, é necessário “assumir o incómodo de fazer uma viagem ao século XVI” e compreender os seus textos à luz dos valores da época. Como acontece com toda a boa literatura e o bom teatro, afirmou, a obra de Vicente convida-nos “a sair de nós”, “desinstala-nos” e incita-nos ao “descentramento”.
Só assim, exemplificou Bernardes a propósito das personagens de “Embarcação do Inferno”, é possível entender os casos do Judeu que é condenado apenas por ser Judeu, do Enforcado que é alvo de uma segunda condenação post-mortem ou ainda dos Cavaleiros, “salvos apenas porque morreram nas partes d’além”.

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Lembrando Paulo Quintela
No debate que se seguiu à palestra, e a partir de uma intervenção do público, a ocasião serviu ainda para lembrar a figura e a obra de Paulo Quintela, intelectual bragantino que foi, a partir da Universidade de Coimbra e do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, o “grande divulgador da obra vicentina no século XX”. José Bernardes, que se confessou seu devedor, afirmou que foi Quintela quem deu a Gil Vicente a “dignidade universitária” e salientou a importância que os seus estudos tiveram para tirar o dramaturgo “da redoma nacionalista em que estava enfiado” nas décadas de 1940 e 1950 . Foi Paulo Quintela – lembrou – que demonstrou como Vicente se integra “na grande tradição do teatro medieval europeu”. Na abertura da conferência, António Augusto Barros, director artístico d’A Escola da Noite e co-encenador do espectáculo, lembrara também a importância do trabalho de Paulo Quintela, cuja versão do texto é aliás a versão escolhida para o presente espectáculo.

Um programa completo para festejar os 500 anos da Barca
“Embarcação do Inferno” é uma criação d’A Escola da Noite – Grupo de Teatro de Coimbra e do Cendrev – Centro Dramático de Évora. Para além do espectáculo, apresentado em co-produção e estreado no passado mês de Outubro, a iniciativa inclui oficinas para professores e um ciclo de conferências, comissariado pelo próprio José Bernardes, consultor científico do projecto. Levado a cabo por duas das companhias portuguesas que mais regular e aprofundadamente trabalham o reportório vicentino, este conjunto de actividades assinala os 500 anos da primeira apresentação e da primeira edição do mais conhecido texto vicentino, também conhecido como “Auto da Barca do Inferno”. Depois das temporadas em Évora e Coimbra, o projecto estará em digressão nacional ao longo dos anos de 2017 e 2018, com passagens pelas principais cidades e salas do país. Em Bragança, o espectáculo pode ser visto amanhã, 12 de Janeiro (às 10h30 e às 15h00, em duas sessões para o público escolar) e na sexta-feira, 13 de Janeiro (às 21h00, para o público em geral). De hoje até sábado, tem lugar, também no Teatro Municipal, uma oficina para professores com 12 horas de duração. O director artístico d’A Escola da Noite salientou o gosto especial pelo facto de a digressão de 2017 estar a começar em Bragança, numa casa onde “sempre somos muito bem recebidos” e que uma vez mais demonstra a sua “abertura à criação artística nacional”.
Nas duas próximas semanas, o projecto ruma a Aveiro e a Viana do Castelo e em Março tem apresentações já confirmadas nas Caldas da Rainha e no Barreiro.

“o polvo, o caranguejo, o peixe… “

Domingo, Outubro 24th, 2010

A MENINA DO MAR (notas para uma dramaturgia) por Helena Genésio

“Lembrei-me de que, quando tinha 5 ou 6 anos e vivia numa casa branca na duna, a minha mãe me tinha contado que nos rochedos daquela praia morava uma menina muito pequenina. Como nesse tempo para mim, a felicidade máxima era tomar banho entre os rochedos, essa menina marinha tornou-se o centro das minhas imaginações. E a partir desse antigo mundo real e imaginário comecei a contar a história a que mais tarde chamei A Menina do Mar” – assim recorda a escritora a génese da sua primeira história para crianças.

Assim se gera um ciclo fascinante de invenção a partir do jogo recíproco real / maravilhoso.

A praia é o espaço do encantamento, da revelação e do encontro. É o espaço do rapazito da casa branca, o seu universo, o seu mundo – espaço lúdico, espaço onírico, espaço maravilhoso que ora se apresenta infinito, grande e deserto; ora habitado, pleno de rochedos maravilhosos e de grutas.

Sophia revela-nos os gostos do rapazito pelos elementos do espaço marinho: O rapazito adorava o verde das algas, o cheiro da maresia, anunciando depois os seus desejos o que indica uma futura transformação: E por isso tinha inveja de não ser peixe para poder ir até ao fundo do mar sem se afogar.

Este rapazito protagoniza um sonhador. E o pequeno sonhador sonha e brinca e é feliz no seu espaço de sonho. É crescente a sua alegria. Tudo propicia o encontro com o maravilhoso e ele acontece: de uma poça de água limpa e transparente emergem as quatro figuras adivinhadas. Num jogo de escondidas, o rapazito espreita aquelas quatro figuras em miniatura: a Menina do mar, o polvo, o caranguejo, o peixe. O nomear desta tríade de amigos da Menina do mar repete-se como um refrão a facilitar a memorização da criança: o polvo, o caranguejo, o peixe… e talvez acentuando os fortes laços de amizade e entreajuda que os une. Ligações fortes, fieis e ternas como nos contos maravilhosos. Entre o rapazito e estes seres maravilhosos sedimenta-se a confiança. Começa a sedução e criam-se laços. Gradualmente começa a integração do nosso herói naquele grupo de quatro figuras. O ritmo dos seus encontros passará a ser diário e matinal, marcado pelas marés.

Contudo surgem obstáculos próprios dos itinerários do amor: os búzios, os ouvidos do mar, informam a Raia dos sonhos que o rapazito e a Menina do mar sonham. Os polvos expiam e trocam-se palavras magoadas de desespero e amargura: tenho que te dizer adeus para sempre. Esboça-se o confronto terra / mar. Um círculo de morte rodeia o rapaz: os polvos cercam-no, sufocam-no, prendem-no. Outros vestígios se cruzam: o desmaio (morte aparente) a reanimação / ressurreição através do filtro renovador (a água do mar) as provas de tortura inscritas no corpo, a provação da espera…

A gaivota branca, elemento alado e libertador traz uma mensagem da menina do mar. O rapaz inicia então a sua viagem maravilhosa. Vai ao seu encontro.

Ao fim de sessenta dias e sessenta noites a ilha onde estão os quatro amigos surge como espaço paradisíaco.

É tempo do encontro, da celebração da amizade, da alegria.

“A Menina do Mar” de Sophia de Mello Breyner Andresen | Teatro da Cerca de São Bernardo |  26 de Outubro [terça]  21h30

texto Sophia de Mello Breyner Andresen encenação Joana Providência dramaturgia Helena Genésio intérpretes Anabela Sousa, Beatriz Godinho, Filipe Moreira, Paulo Mota, Sandra Salomé espaço cénico e marionetas Cristóvão Neto figurinos Lola Sousa desenho de luz Pedro Carvalho banda sonora Rui Lima, Sérgio Martins