o homem que nunca chegou a sair

Augusto Baptista, Elucidário oblíquo do reino dos bichos (2004)

Andando eu de barco a remos a passear no lago, de repente sou alvo da abordagem d’A Escola da Noite. Tomado o barco de assalto, outro remédio não tive senão render-me, ceder ao ímpeto atacante: pegaram nas minhas coisas, passaram a tratá-las por tu.

Desde essa hora, o Grupo peregrina pelas minhas derivas com à-vontade, num exercício de trapézio voador, sem rede. Um destemor que arrepia, me arrepia. Eu espectador de mim próprio, eu a voar num enfoque de pluralidades, dissecado em mostras, perscrutado em conversas, teatralizações, presenças gráficas, fotográficas, tangram, enigmas, prosas; eu, avesso às luzes, encandeado; eu a voar nas mãos do António Augusto Barros, dos actores, nas mãos de toda a Companhia, lançado sem pára-quedas no espaço do Teatro da Cerca de São Bernardo, durante um mês. Eu que não sei voar! Eu, brincalhão, olhado a sério.

Assusta!

Declaro-me inocente neste cometimento, neste resultado de um labor interpretativo autónomo, honrado e sério, reconheço, que me confronta, sonda, inquire. Também, estou em crer – daí o interesse da aventura – que confronta, sonda, inquire os outros.

Os outros!

O que sou, o devo significativamente aos outros. Família, gente anónima. Amigos: muitos, plantados em diversas geografias, aqui e além-mar, semeados na lusofonia, no Mundo, na Via Láctea. Plantados na minha terra: Feira dos Onze, Escola Livre, Escadas Redondas, onde eu e o Júlio Pinto, meu amigo-irmão, palavras dele, “fizemos planos para fugir à mediocridade do mundo rasteirinho que nos cercava”.

Pé em chão original, de onde nunca cheguei a sair, tal qual Drummond em “A ilusão do migrante”:

Lá estou eu, enterrado
por baixo de falas mansas,
por baixo de negras sombras, por baixo de lavras de ouro,
por baixo de gerações,
por baixo, eu sei, de mim mesmo, este vivente enganado,
enganoso.

Augusto Baptista, Junho de 2019

o homem que

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