Gil Vicente, em tons de crepúsculo

Floresta de Enganos © Carolina Lecoq

Sabemos que Floresta de Enganos foi representada em Évora, no ano de 1536, em pleno reinado de D. João III. A possibilidade de o autor ter falecido em data próxima (talvez nesse mesmo ano ou no seguinte) confere à peça uma característica de fechamento. Tal como o Auto da Visitação é aceite como marco inaugural da obra do dramaturgo, Floresta de Enganos assinala o termo de uma carreira longa (35 anos), ao serviço do Rei e do Reino. Essa circunstância não deixa de ser assinalada na didascália final que acompanha a edição de 1562: “… acabou esta comédia, que é a derradeira (…) que fez Gil Vicente em seus dias”.

Mais do que nenhum outro, o auto revela-se surpreendente senão mesmo desconcertante. De facto, as cenas sucedem-se com escassa ligação temática entre si. A maior parte da ação corresponde a uma moldura sentimental, ao jeito da comédia. Assim o indica a variedade e o elevado número de personagens: Cupido e Apolo, o Rei Telebano e sua filha Grata Célia, estes últimos associados ao reino de Tessália. Mas há também um Pastor, um Duque peregrino e a alegoria da Ventura, que surge apenas no final. Todos entretecem uma complexa história de amores desencontrados. Neste plano, sobressai Cupido, o deus do amor, que surge apaixonado, sem ser correspondido e sem ter a quem se queixar, uma vez que, em tais matérias, ele mesmo representa a instância suprema. Mas a Floresta de Gil Vicente é bem mais densa do que a ação descrita deixa supor. A par com esta tónica de comédia fantasiosa, surgem personagens de farsa, ou seja, figuras que se movem na órbita do engano. É, desde logo, o caso do Mercador-onzeneiro, facilmente ludibriado por um escudeiro, sob disfarce de viúva.
Outra cena farsesca resulta da presença de um velho juiz. Ao ser procurado por uma moça que pretende aconselhar-se, o magistrado mostra a sua venalidade, tentando obter dela uma paga amorosa. Cumprindo as instruções dilatórias da rapariga, apresenta-se de noite, numa padaria, perguntando de imediato: “Onde dormis?”
A ardilosa moça dedica-se então a neutralizar a identidade do magistrado: começa por desapossá-lo da sua indumentária (a loba, as luvas, a beca de veludo e o sombreiro); retira-lhe depois a vara, símbolo da dignidade judicial. O Juiz é também avisado para não falar (nem sequer deve tossir) ou seja, é obrigado a abandonar a eloquência, atividade que mais o define, e vê-se obrigado a assumir a aparência de uma negra, que peneira e amassa. Por fim, é obrigado a suportar as admoestações da velha, que, em concertação com a moça, leva a humilhação o mais longe que pode.
Em tudo consente o velho jurista, tomado por um ardor amoroso que não vem descrito nos livros:

Paciência
Pois juro em minha consciência
Que este texto não o entendo:
Mas se estou peneirando
É em louvor e reverência
Do amor a que me rendo.
Estas voltas mal as dou,
Dulcis amor, quid me vis?
Que não se aprende em Paris
Este lavor em que estou.
Oh, amor!

Em outras peças (Barca do InfernoFrágua de Amor Juiz da Beira) Gil Vicente tinha já procedido à crítica do exercício da justiça. Agora, porém, chega onde nunca tinha chegado.
A aparição em cena do Doutor Justiça Maior é canónica (a estudar em voz alta). Mas basta que a moça o interpele, ainda da rua, para que essa postura se altere. Na segunda cena em que intervém, o juiz surge já totalmente descaracterizado: no vestuário, na linguagem e nos atos.

O espetador não pode assim deixar de reter a força das duas cenas em que intervém esta personagem: os livros em que estuda e o latim em que se exprime na primeira cena são substituídos pelo alguidar da massa e pelo falar de negro, que o colocam na escala mais baixa da sociedade. Saída de si pela concupiscência, a figura integra-se no rol dos velhos ensandecidos por amor que marcam presença na obra de Gil Vicente: o Fernandianes do Velho da Horta ou a Brásia Caiada do Triunfo do Inverno e a Filipa Pimenta do Auto da Festa. Mas os efeitos dessa loucura são agora mais graves: enquanto os casos invocados remetem para situações socialmente indiferenciadas, na situação em causa eles comprometem o exercício da justiça.
O Doutor acaba por fugir, deixando para trás todos os atributos de que fora privado. Assim fica a justiça: cobarde, desnudada e posta a ridículo.
Ainda mais forte é a impressão causada pelo prólogo. Nele comparecem um Filósofo e um Parvo, atados um ao outro. O segundo tem por missão impedir que o primeiro fale em público e o primeiro reclama essa possibilidade.
A primeira figura coloca-se na linha dos filósofos antigos (aqueles que clamaram contra a tirania de Roma, por exemplo). A certa altura, revela ter estado encarcerado “em cadeia tenebrosa” por ter ousado repreender. O maior suplício de que se queixa é, contudo, o de ser obrigado a conviver com o néscio. Um Filósofo vigiado por um parvo sensitivo, que penas pensa em comer e em dormir, significa, afinal, a morte da própria Filosofia.
Na figura do Filósofo que já não consegue fazer-se ouvir pela corte podemos ver o retrato do próprio Gil Vicente. Não se tinha ele apresentado à corte, em 1502, no Auto Pastoril Castellano como Gil, o pastor-filósofo que alcança os mistérios que outros não entendem? Não se empenhou sempre em proclamar a verdade, censurando práticas, atitudes e tendências que ameaçavam a ordem e as conveniências do Reino?
Não sabemos se ao invocar o encarceramento está a falar em registo figurado ou literal. Mas é de supor que a maior parte das pessoas que assistiu à representação do auto (talvez com o autor incorporado no elenco) identificasse coerência autobiográfica no essencial das queixas que são apresentadas. Ao entrar em cena, já bem perto do final, o Duque peregrino tem uma expressão que bem podia ser assumida pelo espetador
Coisas que não são de crer 
Acho por esta floresta.

Afinal, a Floresta acaba por ser um lugar de acontecimentos inesperados. A peça termina em bem, com a libertação da princesa Grata Célia, e o seu casamento com o Príncipe da Grande Grécia, em desfavor de Cupido. Numa comédia, espera-se que assim seja. Mas o estereótipo do desfecho não faz esquecer as sombras que entretanto se foram fazendo presentes. Boa parte da ação é noturna e a floresta é, em si mesma, um espaço de obscuridade. Foi nestes tons, ao mesmo tempo crepusculares e fantasiosos, que Gil Vicente escolheu despedir-se da corte. Aconteceu em Évora, quase há quinhentos anos.

José Augusto Cardoso Bernardes
(Faculdade de Letras de Coimbra)



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