Celebrando as palavras

Ao Barros e ao Igor.
Este espectáculo também é deles.

© Carolina Lecoq

O Cendrev e A Escola da Noite celebram com Floresta de Enganos a sua terceira co-produção, a terceira estreia em conjunto no Teatro Garcia de Resende.
Escolhemos as palavras. Depois de O Abajur Lilás (2012) e de Embarcação do Inferno (2016), celebramos nesta Serra Mineia as mais de quatro e as quase três décadas dos percursos destes dois colectivos, os milhares de espectadores que aos dois grupos (e de cada grupo) têm feito companhia. Celebramos os projectos que construímos juntos, o compromisso com a arte e com o serviço público que nos anima, o companheirismo, a admiração e a solidariedade recíprocas que mais uma vez fomos chamados a exercitar, perante as tropelias que a vida nos vai fazendo.
Celebramos o prazer de trabalhar a obra de Gil Vicente e o orgulho em que ela seja uma marca dos nossos reportórios. Não buscamos a “actualidade” nem fazemos actualizações dos textos vicentinos – receamos os equívocos que tantas vezes se geram nestas práticas. Trabalhamos Gil Vicente porque ele continua a interpelar-nos hoje, tendo escrito comoonde quando escreveu. É verdade que, neste caso, abrimos uma excepção: pela primeira vez, e perante uma peça que foi quase integralmente escrita em castelhano, partilhamos com o público o privilégio de podermos desfrutar da tradução feita por José Bento. Mas lembramo-nos de que esta última peça de Gil Vicente foi escrita e representada em Évora, ao “muito alto e poderoso rei” D. João III, em 1536. O mesmo ano em que, a pedido da corte portuguesa, a Inquisição viria a instalar-se em Portugal.

Mais do que em relação a outras obras de Vicente, subsistem muitos enigmas por resolver em relação à leitura de Floresta de Enganos. Há quem se divirta com as peripécias e a comicidade da falsa viúva que engana o usurário, do deus Cupido que se apaixona pela mulher terrena, do velho juiz que não resiste aos calores do corpo, do casamento relâmpago a que hoje chamaríamos amor à primeira vista.
Há quem sorria, quinhentos anos depois, com a nostalgia de quem comenta

Não havia em Portugal
nos tempos mais ancianos

tantas maneiras de enganos
e o pragmatismo de quem engana
que o engano não é estranho,
pois se usa a cada hora,
e a verdade de ano a ano.

Há quem assinale que talvez estas histórias sejam apenas um engano mais, praticado por quem quer dizer coisas, com os instrumentos de que dispõe e a arte que maneja.
Nós não deixamos de brincar aos amores e à mentira, entre deuses e humanos. Mas reparamos no Filósofo, com um Parvo atado ao pé, preso e proibido de falar, que não deixa de segredar ao público que está a pagar pelo que pensa, pelo que criticou, pelos seus “consejos muy sanos” aos que estavam
começando a ser tiranos
Um Filósofo que pede
Deixa-me ser ouvido
desta gente cortesã.
mas acaba preso e de coração desconsolado
co’ignorancia tamanha.

Gil Vicente – isso é certo – escolhia as palavras. E escolheu abrir com estas, provavelmente interpretadas por si próprio, a que viria a ser a sua última peça. Em Évora, perante a corte, em 1536.
Também isso celebramos com o nosso espectáculo.

Évora, Dezembro de 2021
Cendrev / A Escola da Noite

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