Café Bonheur

“Café Bonheur”, de Matéi Visniec (© Eduardo Pinto)

A cidade de Coimbra, bem como o Teatro da Cerca de São Bernardo, serão sempre, para mim, o “cenário” de uma experiência cultural e humana única: escrevo peças de teatro há 50 anos, mas é a primeira vez que enceno, eu próprio, um dos meus textos. Em primeiro lugar, agradeço ao António Augusto Barros por me ter convidado a viver estes momentos artísticos intensos e ricos em emoções.

Escolhi, para esta criação, uma sequência de textos que têm uma conotação política mas também poética. Neste espectáculo, falo das nossas angústias num mundo sem bússola, mas defendo também a esperança, porque confio no ser humano e na sua capacidade de superar as crises. Fui, durante 32 anos, jornalista em Paris, na Radio France Internationale, e muitas das minhas peças são inspiradas em crises e contradições que atravessam as nossas sociedades. Gosto de usar na minha escrita “as armas” do humor e do escárnio, da ironia e da sátira porque me formei na Roménia, no tempo da ditadura, quando a literatura era uma forma de resistência.

Quando era jovem, em Bucareste, escrevia poemas e peças subversivas. Tinha diante de mim uma imagem clara do mal histórico, sabia quem era meu inimigo, quem eu devia derrubar, como funcionava a lavagem cerebral operada pelo poder totalitário. Mas mais tarde, em França e no Ocidente, encontrei-me diante de formas mais subtis de manipulação mental e constatei que o mal é mais difícil de identificar e, portanto, mais difícil de combater: a lavagem cerebral, operada pela sociedade de consumo, pelas indústrias do entretenimento, pelas modas e pelas tecnologias lúdicas, pelos impérios mediáticos que querem ocupar o nosso tempo 24 horas por dia (e também controlar-nos). Esta lavagem cerebral sofisticada é portanto muito mais difícil de denunciar no teatro…

Café Bonheur é um espectáculo-manifesto que toma a forma de um cabaret e de uma comédia. Proponho, bem sustentado por cinco excelentes actores e por uma equipa de criação apaixonada e entusiasta, uma fábula filosófica mas também um debate social. Não é por acaso que a palavra café figura no título. O café como lugar de reencontro e de socialização, de debate e de reflexão é uma invenção europeia. Este lugar, simultaneamente popular e mágico, faz parte da própria identidade da Europa. Em todas as capitais do nosso continente, encontramos pelo menos um café mítico. Em todas as cidades da Europa, encontramos pelo menos um café tradicional que se insere na paisagem urbana como um espaço de liberdade e de criação. Existem tantas utopias e tantas correntes artísticas que nasceram nos cafés! Estes lugares conheceram tantas agitações revolucionárias… Se as mesas dos cafés pudessem falar, contar-nos-iam toda a história dos combates de ideias na Europa. Estes lugares têm uma alma e os milhares de belas páginas, escritas nos cafés por inúmeros autores, permanecem na memória das paredes, das mesas, dos copos e das taças…

Também não é por acaso que no título deste espectáculo figura a palavra bonheur [felicidade]. A procura da felicidade individual, legítima desde que o ser humano existe na Terra, foi deturpada no nosso mundo global para se tornar uma obsessão, uma doença do egoísmo primário, uma forma de cegueira e de toxicidade. Podemos ser verdadeiramente felizes quando mesmo ao nosso lado alguém sofre horrivelmente? Como encontrar o justo equilíbrio entre a felicidade pessoal e a felicidade colectiva? E como fazer para não cair nas garras de certos vendedores de felicidade? Existem todos os tipos
de gurus e de ideólogos que nos prometem receitas milagrosas… Mas que, na realidade, querem transformar-nos em indivíduos submissos das suas doutrinas, querem erradicar o nosso espírito crítico e muito frequentemente querem apagar o nosso estatuto de cidadãos para nos converter em simples consumidores numa irracional “sociedade da abundância”.

Aqui estão apenas algumas pistas de reflexão para o espectador que venha assistir ao Café Bonheur. Por fim, importa realçar que optámos pela palavra francesa bonheur como uma homenagem a esta França que aperfeiçoou a arte de viver, mas que foi o teatro do maior número de revoluções na Europa. Nós, os humanos, ainda temos uma revolução a fazer: uma revolução interior para podermos aceder a uma inteligência colectiva. Só graças a uma inteligência colectiva poderemos evitar o naufrágio da nossa civilização. Quanto à felicidade, ela virá se conseguirmos evitar o afundamento. A verdadeira felicidade será colectiva ou não existirá para ninguém.

Matéi Visniec

Os textos que fazem parte deste espectáculo figuram no livro “Teatro decomposto ou o homem lixo” publicado pela primeira vez em França pelas Éditions L’Harmattan, Paris, 1996.

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