texto da companhia no programa do espectáculo
Fogem da pátria. Tinham pátria?
Hélia Correia, Um Bailarino na Batalha
Tinham, pelo menos, povo. Porque as pátrias
surgiam num momento e apagavam-se noutro.
Os povos, não.
O argentino que um dia vislumbrou os cronópios a pairar num teatro de Paris reinvidicava para a sua obra uma implicação com os contextos sociais e políticos em que vivia: “isso a que alguns chamarão compromisso e outros ideologia, e a que eu prefiro chamar responsabilidade perante os nossos povos”.
Ao mesmo tempo, o escritor que desafiou os seus leitores para o jogo da macaca afirmava que “a literatura não nasceu para dar respostas, mas para fazer perguntas, para inquietar, para abrir a inteligência e a sensibilidade a novas perspectivas do real”.
Com obras proibidas no seu país e exilado em França, recusou fazer o “jogo do inimigo” e remeter-se à nostalgia ou ao silêncio: “senti que tinha a obrigação de fazer exactamente o oposto, isto é, multiplicar o meu trabalho de escritor, exigir muito mais desse trabalho do que exigira até então”.
Quando confrontado com as interpretações que leitores e críticos vinham fazendo do conto Casa Tomada, relacionando-o com a situação política da Argentina, confessou ficar contente com “a possibilidade das múltiplas leituras de um texto”.
Não espanta, por tudo isto, que encontremos na obra de Julio Cortázar (e na relação do autor com o acto de criação artística) uma entusiasmante fonte de inspiração.
Silvana Garcia é uma amiga e uma companheira de percurso, com quem contamos há muitos anos para melhor conhecermos as dramaturgias brasileira e latino-americana e para nos ajudar a reflectir sobre os caminhos que fazemos enquanto companhia. Testemunhámos com alegria a sua aproximação ao trabalho no palco, que se somou a tudo o que vinha oferecendo ao teatro a partir da sua carreira académica na Universidade de São Paulo. Aguardávamos com impaciência pela oportunidade de a convidarmos para voltar a juntar-se a nós em Coimbra, agora como encenadora.
Sabíamos que ia desafiar-nos e era isso que queríamos. Inspirada pelo conto de Cortázar, propôs-nos uma dramaturgia ancorada no drama das pessoas que são obrigadas a abandonar a sua terra. Propôs-nos ainda que essa dramaturgia fosse construída através de um processo colaborativo. Com isso, ofereceu-nos a possibilidade de reunirmos uma extraordinária equipa, juntando à companhia a cenógrafa e figurinista Rachel Caiano, que pela primeira vez participa numa criação d’A Escola da Noite, o compositor Luís Pedro Madeira, que assina a sua segunda banda sonora original no nosso percurso, e a actriz Paula Garcia, desta vez como assistente de encenação, num regresso à casa que nunca deixou de ser sua.
Em colectivo – escreve Silvana neste programa – desenharam um “gesto de solidariedade e empatia para com essas populações em êxodo”, um “clamor de indignação contra as forças que as ameaçam”.
Em 1968, Sophia de Mello Breyner escreveu “Cantata da Paz”, para ser cantada na primeira vigília que um grupo de católicas/os portuguesas/es realizou em Lisboa, em plena ditadura, contra a Guerra Colonial. Na Igreja de São Domingos, cantou-se a lamentação / dos povos destruídos / dos povos destroçados, num tempo de pecado organizado.
Sempre ligadas ao domínio da terra e ao controlo dos recursos, as guerras continuam a acontecer agora, enquanto vivemos. Da Palestina, do Iémen, da Síria, de Cabo Delgado em Moçambique, da Ucrânia, chegam-nos relatórios da fome / o caminho da injustiça / a linguagem do terror. Relatos que vemos, ouvimos e lemos e que não podemos ignorar, nem aceitar como normais.
A dada altura, o narrador de Casa Tomada confessa: “sentíamo-nos bem e, pouco a pouco, começávamos a não pensar. É possível viver sem pensar”. A nós, construtoras/es deste espectáculo sob a direcção de Silvana Garcia, o processo que agora termina ajudou-nos a contrariar tal hipótese.
É também por isso que gostamos tanto de fazer teatro.
A Escola da Noite
Coimbra, 25 de Abril de 2024