Para que serve uma tragédia?
CORO
De muita coisa é Zeus no Olimpo o Senhor,
e muita coisa os deuses fazem sem se contar.
Vimos o que se esperava não se realizar.
P’ra o que não se sabia o deus achar caminho.
Assim vistes o drama terminar.
Eurípides, Medeia (1)
No programa de “As Troianas” de Eurípides (que estreámos em 1997), Maria Helena da Rocha Pereira recordava a definição de Aristóteles: a tragédia é “uma imitação da acção, elevada e completa, numa linguagem temperada, (…) que, por meio da comiseração e do temor, provoca a catarse de tais paixões”. A professora que aceitou ajudar-nos na nossa primeira incursão nos mitos clássicos explicava ainda que a tragédia grega apresenta, “com a vantagem do distanciamento no tempo, os eternos problemas das relações do homem com o homem, com os deuses, com o destino”.
Dois anos depois, um outro mestre que tanto marca o nosso caminho, Pierre Voltz, escrevia a propósito de “Os Persas” de Ésquilo, que aqui encenou em 1999: “O trágico é este: um porquê sem resposta”. “A grandeza da tragédia grega – acrescentava Voltz – está em não oferecer qualquer consolação”.
Heiner Müller – autor de “O Horácio”, versão da história originalmente contada pelo romano Tito Lívio que apresentámos em 2003 – lembrava nos anos 80, em entrevista à Teatruniversitário (2), que na tragédia grega o “optimismo se manifesta na capacidade de suportar o medo” – “não se fecham os olhos perante o que assusta”. Fortemente influenciado pelos clássicos e também ele autor de uma “Medeia”, o dramaturgo alemão acrescentava: “Eis a força desta cultura: não tornar tabu o que não é compreensível, nem justificável, o que não tem solução”.
Hélia Correia afirma que a sabedoria dos gregos “é o conseguir aliar a inteligência, o pensamento e a fala sobre o pensamento (…) com uma cosmogonia prodigiosa”. E chama a atenção, nos dias que correm, para a importância da palavra: “Só a palavra dita, solta, dialogante, a capacidade de argumentação pode fazer pensar. É preciso falar. É preciso retomarmos a palavra”.
Disso nos fala esta Medeia, contada por Hélia Correia a partir da cozinha da casa de Medeia e Jasão – espaço doméstico das escravas mulheres. Ao destacar estas personagens, a escritora escolhe alguns dos traços essenciais da versão imortalizada por Eurípides e (re)oferece-nos a oportunidade de nos debruçarmos sobre temas tão antigos (e duradouros) como a própria humanidade: as relações de dominação (senhor-escravo, cidadão-bárbaro, nacional-estrangeiro, homem-mulher); a forma como estas relações de poder são construídas, reproduzidas mas também desestabilizadas pelas palavras; e ainda o lugar da paixão, dos sentimentos, da irracionalidade, no comportamento humano e nas relações sociais.
Cruzando duas das linhas que constituem a matriz do reportório da companhia – o trabalho sobre os clássicos e a valorização da dramaturgia portuguesa contemporânea – “Desmesura” integrava o plano de actividades para o quadriénio 2018-2021, delineado há mais de dois anos. Estávamos já em ensaios, com esta equipa alargada que agora se vos apresenta, quando o acidente aconteceu. De repente, a Maria João não poderia ser Medeia e nós fomos tomados pelo temor absoluto, pela brutalidade do incompreensível, pela falta de palavras que descrevessem o que sentíamos. Perante a tragédia que se insinuava na vida, sem tempero da linguagem nem distanciamento no tempo, sabendo que nunca encontraríamos consolação suficiente para uma dor que se antevia sem medida, entregámo-nos à esperança e nas mãos de quem podia mais do que nós. E, ao mesmo tempo, voltámos ao trabalho: aos ensaios, ao teatro, buscando nas horas que passávamos no palco, não respostas, não soluções, mas pelo menos uma espécie de abraço, de impulso, uma espécie de razão para continuar. Encontrámo-la em conjunto e tem, por estes dias, a forma deste espectáculo, estreado já com a alegria de sabermos que a Maria João está a recuperar e que um dia destes estará de volta ao Teatro.
Com umas palavras que podemos estender à generalidade da tragédia grega, Maria de Fátima Silva afirma que “Desmesura” retrata aquilo que é “insondável e fluido: os recônditos obscuros da alma humana” (3).
Haverá sempre acontecimentos que escapam à nossa compreensão, alguns dos quais nos colocam em situações-limite. É duvidoso que o contacto com a tragédia – escrita, representada ou materializada nas nossas vidas – nos deixe mais preparados para lidar com tais eventos. Mas ele convida-nos a reflectir sobre a fragilidade e as limitações inerentes à condição humana, tanto quanto nos desafia a decidir o que fazer nos períodos entre tragédias.
Também por isso, faz sentido o repto que esta Medeia nos lança, imediatamente antes de sair de cena.
A Escola da Noite
Outubro de 2019 [texto publicado na folha de sala do espectáculo]
(1) Eurípides, 1991, Medeia, introdução, versão do grego e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, Instituto Nacional de Investigação Científica / Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra.
(2) Anabela Mendes, 1983, “Entrevista com Heiner Müller”, Teatruniversitário, 7/8, p. 31-44.
(3) Maria de Fátima Sousa e Silva, 2006, “Linguagem, barbarismo e civilização: Hélia Correia, Desmesura”, Furor – ensaios sobre a obra dramática de Hélia Correia. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra.