O Cendrev e A Escola da Noite organizaram ontem a primeira conferência associada ao espectáculo “Embarcação do Inferno”, de Gil Vicente, que está actualmente em cena no Teatro Garcia de Resende. Na Biblioteca Pública de Évora, perante uma sala cheia e um público atento, os professores universitários Hélio Alves e José Augusto Cardoso Bernardes falaram sobre a importância de Vicente e do sentido que faz continuar a apresentar as suas obras.
Convidado pelo Cendrev e pel’A Escola da Noite para falar sobre “Gil Vicente no seu tempo e no nosso tempo”, Hélio Alves (Universidade de Évora) relembrou que Gil Vicente “é um dos maiores autores da literatura ocidental”, lamentando no entanto que ele não esteja no cânone internacional. Mesmo em Portugal, representar as suas obras “é ainda hoje um grande desafio”, uma vez que “não se construiu uma tradição cénica nem uma tradição crítica” em torno do reportório vicentino – é necessário trabalhar para que este adquira uma maior atenção além fronteiras, afirmou. Num desafio lançado a investigadores, profissionais de teatro, instituições oficiais, professores e público em geral, defendeu: “assumamos a grandeza de Gil Vicente, sem qualquer preconceito”.
Aprofundando a análise daquelas que são, a seu ver, as grandes particularidades da obra de Gil Vicente, Hélio Alves contrariou a visão exclusivamente centrada nas conhecidas “personagens-tipo”, chamando a atenção para os traços de individualidade que é possível encontrar em várias das personagens vicentinas. Por outro lado, partilhando com o público alguns resultados de investigações actualmente em curso, o docente universitário salientou a “capacidade anagógica do trabalho de Gil Vicente” e o “segundo sentido, de natureza escatológica e religiosa”, que é possível encontrar em muitas das suas obras: “Gil Vicente é muito mais rico do ponto de vista dos significados do que à primeira vista parece”, concluiu.
“Uma excelente porta para o século XVI”
José Bernardes, professor da Universidade de Coimbra e consultor científico do projecto “Embarcação do Inferno”, elogiou o trabalho realizado pelas duas companhias na montagem do espectáculo, salientando, a par do respeito pelo texto original, a opção dos encenadores por valorizarem o traço “muito visual” que caracteriza este obra. Professor universitário há vários anos envolvido na elaboração e na avaliação dos programas curriculares do ensino básico e secundário, Bernardes reafirmou o sentido que faz estudar, representar e assistir ao teatro vicentino nos dias de hoje, cinco séculos depois de ele ter sido escrito e representado. O “Auto da Barca do Inferno”, especificou, “é uma excelente porta para o século XVI – através dele, o aluno pode dar-se conta de como se vivia há 500 anos”.
Concordando com Hélio Alves quanto à necessidade de estimular as experiências que visam aproximar palco e academia no trabalho sobre Vicente, José Bernardes defendeu que as práticas pedagógicas devem contribuir para que os alunos sejam capazes de “compreender, interpretar e reflectir” sobre os textos literários que lhes são dados na Escola. No caso do Teatro (e de Gil Vicente em particular), o contacto com a cena é essencial.
O início de uma longa (e rica) viagem
“Embarcação do Inferno” é uma co-produção entre o Cendrev e A Escola da Noite. Estreado no dia 6 de Outubro, está agora na segunda semana da sua temporada em Évora, onde permanecerá, com sessões para o público em geral e para escolas, até ao próximo dia 30. Entre 10 de Novembro e 4 de Dezembro, o espectáculo será apresentado em Coimbra, no Teatro da Cerca de São Bernardo, iniciando depois uma digressão pelas principais cidades e salas do país, que decorrerá ao longo de todo o ano de 2017. Associada às temporadas nas suas cidades e à digressão nacional, as duas companhias apresentam uma programação paralela, que inclui oficinas para professores, conferências, debates, mesas-redondas, exposições e edições, com a qual pretendem comemorar os 500 anos sobre a primeira apresentação e a primeira edição do mais conhecido e emblemático texto de Gil Vicente.