Oh, como deve ser agradável a sensação de elasticidade
quando se marcha sobre cadáveres
Matéi Visniec, “Da sensação de elasticidade
quando se marcha sobre cadáveres”
O Centro Dramático de Évora anunciou ontem “a inevitabilidade de encerrar a sua actividade a partir de Janeiro de 2020”. Fê-lo em função dos resultados provisórios dos “concursos sustentados para o biénio 2020-2021” da Direcção-Geral das Artes. Segundo estes resultados, a companhia deixará de poder contar com financiamento público para o desenvolvimento do seu trabalho.
O Cendrev tem 44 anos de actividade continuada: foi responsável pela criação de dezenas de espectáculos teatrais; formou centenas de novos profissionais; recuperou, dinamiza e divulga uma jóia da cultura popular portuguesa como os “Bonecos de Santo Aleixo”; justificou a recuperação e assegura há muitos anos a manutenção e o funcionamento de um dos mais importantes teatros portugueses – o Teatro Garcia de Resende; tem uma sólida implantação na cidade de Évora e na região alentejana, percorre anualmente o país num esforço grande de itinerância e goza de reconhecimento internacional; mantém uma estrutura de profissionais, a quem assegura níveis mínimos de estabilidade e “boas práticas de empregabilidade” (palavras do júri), mesmo em momentos difíceis, como os que atravessa há largos anos; travou uma luta sem descanso para não deixar morrer a Bienal Internacional de Marionetas de Évora, que em 2019 regressou e se mantém como um dos principais acontecimentos culturais do Alentejo; afirmou-se no panorama teatral português como um parceiro de confiança, elemento dinamizador de várias redes de intercâmbio e de plataformas de reflexão sobre a política cultural no nosso país; é das companhias portuguesas que mais tem promovido o diálogo e a cooperação com estruturas congéneres de Espanha. O Cendrev é uma referência para quem considera, como nós, que a existência de estruturas estáveis de criação artística continua sendo essencial para o desenvolvimento do Teatro em Portugal e para quem valoriza, como nós, o contributo que estas estruturas podem dar para o desenvolvimento das cidades médias e das diferentes regiões do país.
O “novo modelo de apoio às artes”, criado pelo Governo ainda em funções, permite que uma companhia com a história e o presente do Cendrev deixe de poder contar, de um momento para o outro, com financiamento público. Não porque o Governo (ou o júri por ele escolhido) considere que o Cendrev deixou de prestar bem o serviço público que justifica o investimento do Estado, mas apenas porque o orçamento que o Governo decidiu dedicar a estes apoios é insuficiente. O júri destes concursos faz uma avaliação positiva do trabalho do Cendrev e destaca muitas das marcas que atrás elencámos. Mas o dinheiro “não chega”, como o próprio júri também quis deixar escrito. O dinheiro “não chega” mas permite, pelos vistos, que a DGArtes emita um comunicado festivo, em que fala do aumento do “apoio médio concedido”, dos 33% de “novas entidades apoiadas” e até de um aumento de 83% nos apoios às artes em relação a 2015 (no fim do período da troika). Nenhuma festa é possível, nenhum regozijo aceitável, num concurso que, por razões de mera tesouraria, condena o Cendrev ao desaparecimento.
Temos com o Cendrev uma especial relação de admiração, cumplicidade e companheirismo, da qual o projecto “Embarcação do Inferno” é o mais recente e vivo exemplo. Mas o seu caso não é caso único neste concurso: só na área do Teatro, há mais de 30 entidades, todas com avaliações positivas por parte do júri, que se vêem excluídas dos financiamentos do Estado. Entre elas, várias estruturas com 20, 30, 40 anos de actividade e provas dadas. A DGArtes e o seu “novo modelo de apoio” preparam-se para as deitar fora, para abdicar do muito que ainda têm a dar ao país, sem uma avaliação minimamente séria do trabalho realizado, dos impactos que tem, das consequências que o seu eventual desaparecimento acarreta – para os profissionais directamente afectados mas sobretudo para as populações, para os públicos a quem o trabalho sempre se dirigiu.
No caso do Cendrev, é ainda difícil de explicar o facto de o Alentejo ter sido a única região que, misteriosamente, viu baixar o financiamento (-8%) quando, em coerência com os discursos sobre o despovoamento do interior e a necessária discriminação positiva, se aconselharia o contrário.
Estamos a assistir à mera repetição do que aconteceu em Março do ano passado. Também então várias estruturas que sustentam o tecido teatral português ficaram excluídas de qualquer apoio, incluindo a nossa. Caso se tivessem concretizado, estes cortes provocariam uma razia sem precedentes nesse esburacado tecido, fustigado por anos de sub-financiamento e por cortes brutais no período da “austeridade”.
A indignação e os veementes protestos acumularam-se e forçaram o Primeiro-Ministro a anunciar um reforço para as candidaturas elegíveis. O problema é agora o mesmo, reforçado por uma carta que o próprio júri enviou à Ministra, em que solicita “uma solução que resgate as expectativas dos candidatos” considerados elegíveis, pondo fim a uma “profunda discrepância”. “Sentimos extremo desconforto na nossa actuação como membros deste júri por as nossas deliberações não encontrarem correspondência financeira nos resultados alcançados”, remata a carta, à qual a Ministra, aparentemente, ainda não deu resposta.
Estes resultados, decididos no final de Agosto, são conhecidos agora, num “tempo de ninguém”, entre um Governo que está de saída e outro que ainda não chegou. Não será por isso que ficamos calados. Não seremos cúmplices, com o nosso silêncio, de mais esta tentativa de destruir boa parte de quem criou as bases do teatro português no pós-25 de Abril e continua a ser uma parte fundamental do tecido teatral do nosso país.
Manifestamos a nossa solidariedade com o Cendrev e com as restantes estruturas excluídas do apoio e insistimos na necessidade de dotar estes concursos de verbas minimamente adequadas à realidade artística e às necessidades do país.
A Escola da Noite, 12 de Outubro de 2019