Dois grupos portugueses, a Escola da Noite e a Companhia de Teatro de Braga, juntaram-se para montar mais de 20 contos do escritor brasileiro. “1.José 2.Rubem 3.Fonseca” chega amanhã, com toda a sua violência, ao Theatro Circo, em Braga.
Foi em 1996, quando estava em viagem pelo Brasil, que uma amiga lhe pôs nas mãos “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca. O encenador António Augusto Barros recorda esse seu primeiro contacto com a obra do escritor brasileiro: “Foi um livro providencial para mim”, diz. Não descansou enquanto não leu tudo. E enquanto não levou aquelas palavras para cima do palco.
Está a acontecer agora: pela primeira vez em Portugal, a obra do escritor brasileiro que venceu o Prémio Camões em 2003, foi transposta para teatro. A Escola da Noite e a Companhia de Teatro de Braga juntaram-se e criaram, a partir de contos do autor, a trilogia “1.José 2.Rubem 3.Fonseca”: um conjunto de três espectáculos sobre os temas da violência, da sexualidade e da solidão. Sempre na cidade. Depois da estreia em Coimbra, no Teatro da Cerca de São Bernardo, a trilogia segue para o Theatro Circo, em Braga, já a partir de amanhã. Em Junho, Rubem Fonseca volta a Coimbra: “José” pode voltar a ser visto a 4 e 5; “Rubem” a 8 e 9, e “Fonseca” a 11 e 12.
Com Rubem Fonseca, frisa António Augusto Barros, há um “corte” com o ruralismo na literatura brasileira. Nascem as cidades e os confrontos, com sangue, morte, crueldade. Ninguém é poupado. Diz-se tudo com todas as letras, mostra-se a realidade com todas as suas agruras. Mas há comédia também, apesar da tragédia. As duas fundem-se num humor negro que faz o público rir, mesmo quando há cabeças cortadas.
Todos estes temas interessaram à Escola da Noite, de Coimbra, e à Companhia de Teatro de Braga, que voltaram a juntar-se – depois de “Sabina Freire”, em 2009 – para se debruçarem sobre a obra do contista, romancista e ensaísta, vencedor também do Prémio Juan Rulfo. Quanto tempo levaram a descobrir a obra, a seleccio-nar os contos, a estudá-los, a pô-los em palco? António Augusto Barros até se ri. Uma odisseia. A ideia inicial até era fazer um só espectáculo, mas o material era de tal forma rico que acabaram por querer fazer três. Podem ser vistos separadamente, mas há diálogos entre os três módulos que apenas fazem sentido para quem vir a trilogia completa, admite o encenador.
Apesar da aventura que foi pegar nestes contos, a encenação acabou por ser uma tarefa facilitada pelo “elenco muito variado” (em que se cruzam os actores das duas companhias) e pela “força dos textos”. A escrita “veloz” de Rubem Fonseca, com “uma grande intensidade dramática”, revela uma “proximidade grande ao teatro”. Ao ritmo próprio das cidades grandes, os contos sucedem-se em palco e enchem-no de tal forma, através das narrativas e do corpo das personagens, que o encenador acabou por optar por um cenário simples. “A cenografia é essencialista e limpa, a ideia era que jogasse ao contrário. A primeiração era fazer um espaço urbano, mas assim salta mais a palavra e o jogo dos actores”, explica. Em palco, por vezes há biombos, mas o elemento fundamental é apenas um “estrado”. É nele que tudo se passa: é quarto, consultório de dentista, escritório, cama…
Vistos os três espectáculos – cerca de sete horas ao todo –, António Augusto Barros acredita que o espectador fica com “uma paleta da obra” de Rubem Fonseca. Mas sobretudo com vontade de conhecer mais: “Acho que é preciso ser muito insensível para não querer conhecer mais”, diz. De resto, é uma pena que o escritor seja tão pouco conhecido em Portugal: “Falta intercâmbio entre real entre as duas culturas [a portuguesa e a brasileira]”, defende, notando que, em todos os espectáculos, se manteve a maioria das expressões brasileiras.
Os temas que marcam o universo de Rubem Fonseca – o dia-a-dia das grandes cidades, a violência física e psicológica, o sexo, a dificuldade de comunicação entre as pessoas, a morte, a indiferença, o crime, a riqueza, o trabalho, a pobreza – cruzam-se nos três espectáculos, ainda que seja possível ver em “José” a violência como fio condutor, em “Rubem” a sexualidade, e em “Fonseca” a solidão.
Em “José”, por exemplo, há sangue e morte em vários contos. E, mesmo naqueles em que a violência não se manifesta de forma explícita, como “Agora você” (ou “José e seus irmãos”), ela está lá. É o caso de “Hildete” que, para António Augusto Barros, é “um dos contos mais violentos”. Mesmo sem tiros e facas, fala sobre uma outra violência, cada vez mais visível nas sociedades contemporâneas e mediatizadas: a violência de fabricar e de expor, através de manobras de marketing, a vida das pessoas. Há ainda “Raimundinha”, que não sabe reconhecer os inimigos que se aproveitam da sua ingenuidade. E um homem, em “A Escolha”, que se divide entre uma cadeira de rodas e uma dentadura. É um dos desdentados do universo de Rubem Fonseca. Os pobres não têm dinheiro para arranjar os dentes.
Mas uma das personagens mais marcantes de “José” é o Cobrador (do conto homónimo), um homem que cobra dívidas à sociedade, sobretudo aos que pertencem às classes mais abastadas. Devem-lhe a dignidade, argumenta: “Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, gelado, bola de futebol”, diz. Com o Cobrador, sim, há morte e sangue em palco. Como na vida.
In Ípsilon, Maria João Lopes