Juan Mayorga, autor de “Animais Nocturnos”, fala do seu teatro, de Coimbra e da política cultural em Espanha e em Portugal. Leia a entrevista ao Diário As Beiras, conduzida pela jornalista Lídia Pereira.
Portugal e Espanha. Dois povos próximos. Nós conhecemo-nos bem?
Tenho a certeza que não. Ainda assim, quando estamos em Portugal sentimo-nos em casa. É um abuso de linguagem dizer que Portugal, relativamente a Espanha e aos espanhóis, é um país estrangeiro. É certo que temos dois Estados, mas há uma afinidade óbvia entre as pessoas. É evidente que partilhamos muitas coisas. Contudo, há uma ignorância profunda.
É uma ignorância mútua?
Do lado de Espanha sim; relativamente a Portugal, não sei. Mas tenho a certeza que relativamente à língua, por exemplo, há uma parte da população portuguesa que conhece a língua castelhana, que está informada sobre o que acontece em Espanha muito melhor do que acontece em Espanha relativamente a Portugal. Quer dizer, a informação relativa a Portugal, em qualquer campo cultural, não passa para Espanha. Ou não passa tanto como devia. Iniciativas como esta que A Escola da Noite está a realizar têm um papel muito importante. Desde logo, graças à Escola da Noite, passam a ser conhecidos por um conjunto de profissionais e gente do teatro em Portugal alguns autores espanhóis.
E há ainda os contactos pessoais que são muito importantes?
Exato. Para lá desse conhecimento, promovem-se contactos pessoais que podem ter grande importância no futuro. Eu vou levar destes dias em Coimbra nomes de autores que não conhecia, textos que nunca tinha lido, grupos de teatro portugueses, não apenas de Coimbra, mas também de Lisboa, do Porto e de Braga. E toda esta informação será transmitida por mim quando regressar ao meu espaço, às pessoas com quem trabalho. O teatro, que tem um enorme dinamismo e uma grande permeabilidade, é o meio ideal para se promover este encontro.
O campo da cultura, do teatro, da dramaturgia, pode facilitar este encontro?
Por um lado, há o evidente problema da língua, do idioma. Mas, por outro lado, há muitas afinidades imediatas. Por exemplo, eu não conhecia os responsáveis d’A Escola da Noite e, numa tarde, pareceu-me conhecê-los de toda a vida. Porque são muitas as coisas que nos unem, temos tantos autores, tantas grandes obras em comum, tantos mestres do teatro a quem respeitamos, que a comunicação acontece naturalmente e de imediato. Eu comentava com Pedro [Rodrigues] e António [Augusto Barros] que considero escandaloso, embora facilmente reparável, o facto de em Espanha se acolherem mais facilmente e com maior frequência companhias russas do que portuguesas. A proximidade, neste caso, paradoxalmente, pode contribuir um pouco para o afastamento, porque não existe o glamour que pode ter o teatro russo. E isto, há que corrigi-lo imediatamente.
O que é que defende para fomentar essa aproximação?
Penso que seria desejável e até normal que os espetáculos ibéricos circulassem neste nosso território. Seria desejável e acredito que não fosse especialmente complicado. Depois há autores, como Abel Neves, a quem tive a sorte de conhecer há alguns anos, ou Vieira Mendes e outros, que deveriam ser conhecidos e ser apresentados nos palcos em Espanha, como já se abrem os palcos portugueses a alguns autores espanhóis. Eu, por exemplo, vou ter “Animais noturnos” em Coimbra e “O rapaz da última fila”, em Lisboa, com os Artistas Unidos. E os Artistas Unidos já tinham sido muito importantes para o meu trabalho porque publicaram alguns textos que circularam em Portugal e até no Brasil.
A publicação em cada um dos países é fundamental?
É muito importante. Como é importante fomentar o trabalho desses extraordinários introdutores culturais que são os tradutores. Os tradutores, são figuras fundamentais neste diálogo de que estamos a falar. Além do mais, os tradutores costumam ser muito generosos, qualquer incentivo que se lhes dê, será respondido com a maior generosidade. Simplesmente, coisas tão elementares como a ajuda à publicação e distribuição dos textos não têm acontecido. É certo que estamos em momento de cortes, mas estamos a falar de quantidades muito pequenas, tendo em conta o rendimento cultural e económico que pode gerar uma aposta desta natureza. Por exemplo, o facto de serem publicados em Espanha autores portugueses, faria com que se reforçasse a imagem de Portugal como nação de cultura e de espírito. E isso é muito importante nos tempos em que vivemos.
É importante que as companhias possam desenvolver iniciativas que promovam o conhecimento mútuo. Em Espanha, há companhias a encenarem autores portugueses?
Tem toda a razão quando fala das companhias. Eu acredito que as instituições não devem liderar, antes devem acompanhar e apoiar essas iniciativas. É muito mais interessante que seja a gente do teatro que se proponha a estabelecer este contacto, porque isso é muito mais produtivo a longo prazo. Por exemplo, A Escola da Noite apresentou cinco textos meus, que vão circular entre os atores, que os vão trabalhar, que vão ser ouvidos pelas pessoas no teatro. E isto tem um efeito muito mais produtivo do que uma iniciativa organizada por burocratas ou políticos, para a qual os atores e os encenadores tenham sido convidados, mas a que podem não aderir de forma tão sincera. Em Espanha, companhias semelhantes à Escola da Noite, estão a fazer um trabalho de divulgação de dramaturgia estrangeira muito importante, de onde se destaca a Sala Beckett, em Barcelona. Ainda assim, devo confessar com vergonha, que não recordo qualquer iniciativa concreta para a difusão do teatro português, de forma exclusiva, em Espanha. Não conheço nenhuma iniciativa para apresentar a nova dramaturgia portuguesa, à semelhança desta que está a acontecer em Coimbra relativamente à dramaturgia contemporânea espanhola.
“Os escritores devem olhar o que os outros não veem”
Um dramaturgo é um observador privilegiado do que somos. O que é que já conhece de Coimbra?
Eu já conhecia Coimbra, porque a primeira viagem que fiz com a minha mulher, então ainda noiva, foi a Portugal – que sempre foi um lugar pelo qual eu senti um especial afeto, sem retórica –, viajamos de comboio e visitamos Coimbra, claro, uma cidade mundialmente conhecida. Estive em Coimbra então, em 1988, e depois, de novo, em 2003, já com um filho. Poucos dias antes de voltar, agora, comentei com um amigo, Reyes Mate, um importante filósofo espanhol, que vinha a Coimbra, e ele disse-me para não deixar de visitar a Biblioteca Joanina [da Universidade de Coimbra], que nunca tinha visitado. Fui ver a Biblioteca Joanina, que me parece ser um dos lugares mais impressionantes do mundo, parece-me um lugar para enlouquecer, uma festa do livro, formidável. Também visitei a sala dos Capelos, a Capela da Universidade, pude caminhar pela velha catedral, em Santa Cruz… Coimbra é uma cidade belíssima. Quanto às pessoas, se os escritores devem olhar o que outros não veem, também devemos ser modestos porque às vezes os intelectuais, os escritores em particular, têm uma grande tendência para teorizar sobre os lugares que visitam, quando, para isso, é necessário tempo e vontade de olhar e escutar a memória e o já esquecido em cada cidade. O que eu encontrei em Coimbra, para já, foi a mesma hospitalidade, a mesma afabilidade que costumo encontrar em Portugal.
É bom ter textos seus em palcos portugueses?
Eu escrevo por duas razões: primeiro, porque me sinto feliz a contar histórias, a explorar a minha língua, a imaginar situações, a examinar a vida real ou as vidas possíveis. Mas também me sinto feliz a escrever para teatro, porque me permite criar ocasiões de encontro. O teatro para mim é, fundamentalmente, encontro. Eu escrevo um texto dramático e a proposta que faço é de um acontecimento social, porque quero que as minhas palavras sejam ditas perante um público. O que significa que, quando escrevo, provoco dois tipos de encontros: o dos atores, em torno do texto, e o do público, que vai completar uma experiência poética com os atores. Eu tenho a sorte de ter peças a serem encenadas em diferentes lugares do mundo, em Portugal, nos EUA, no Canadá, no Brasil, Argentina, México e Equador, em Espanha, Grécia, Roménia e Ucrânia. Claro que não vou ver a maior parte destas montagens, mas pensar que as pessoas se reúnem em torno do que eu escrevo é uma felicidade imensa. Porque, o mais importante é provocar uma experiência coletiva, um encontro entre as pessoas, de forma modesta, sem dar lições, simplesmente olhando de perto os seres humanos, como disse o grande mestre Tchekov.
Como é que um dramaturgo olha de perto este momento da Europa?
A chamada crise revela, no meu entender, que a ordem social que nós criamos é extraordinariamente ineficaz, mas também injusta e, inclusivamente, imoral. Isto já era assim há 10 anos, mas agora tornou-se escandalosamente visível. Em Espanha, 45 por cento da população jovem está desempregada. E isto é escandaloso, porque estamos a impedir que todos estes jovens, no seu momento de maior energia e capacidade mental e física, não possam contribuir. E isto é mau para eles e é mau para a sociedade. Mas a injustiça é flagrante, porque o desemprego leva a que muitas pessoas tenham as maiores dificuldades em viverem uma vida digna. Claro que o que está a acontecer na Europa é apenas uma parte de uma ordem mundial que continua a especular com a fome de milhões de pessoas, quando se permite que se joguem nos mercados bolsistas as colheitas de cereais que depois provocam a fome em África. Isto é escandalosamente vergonhoso. E não é demagogia, está a acontecer e nós deixamos que aconteça. Ao mesmo tempo que, agora na Europa, os cortes tremendos nos salários, na saúde, na educação e na segurança social provocam grande sofrimento e empobrecem grandes massas da população. E tudo isto é simultâneo à informação que nos chega diariamente a dar conta de gente que enriquece, com enormes lucros, não pelo seu talento ou pelo seu trabalho, mas simplesmente porque pertencem a uma espécie de aristocracia social, porque vivem e sempre viveram próximo ao poder. E isto é, simplesmente, inaceitável, é insuportável. E parece-me que estes cortes vão, muito brevemente, ter grandes custos em termos da democracia.