Trinta anos e um “intruso convidado”
Com Trilogia de Alice, encerramos as comemorações dos trinta anos d’A Escola da Noite. Iniciada em Janeiro de 2022, esta celebração incluiu um primeiro ciclo de quatro espectáculos (Floresta de Enganos e Embarcação do Inferno, de Gil Vicente, Palhaço Velho, Precisa-se, de Matéi Visniec e Cidade, Diálogos, de Gonçalo M.Tavares); a estreia na dramaturgia e na encenação de Igor Lebreaud, com Aqui, onde acaba a estrada; a festa de Cabaret Vian, que nos encheu a casa de música e amigas/os.
Vividos com intensidade, estes quinze meses passaram depressa e foram o que queríamos que fossem: uma montra dos nossos trabalhos mais recentes, o contexto para o nascimento de novas criações, uma oportunidade para aprofundarmos algumas das principais linhas de trabalho que marcam o nosso percurso e a linguagem artística que continuamos a construir. Com estes sete espectáculos, revisitámos Gil Vicente, explorámos a dramaturgia contemporânea portuguesa e internacional, experimentámos transposições cénicas de textos não teatrais, cruzámos a linguagem especificamente teatral com a música, em diferentes registos. Estes processos de criação permitiram-nos, por outro lado, consolidar o núcleo artístico permanente do grupo, alargar as colaborações com outros/as artistas e estruturas, reforçar a equipa técnica e, mais recentemente, acolher três estagiárias formadas nas escolas de ensino artístico da cidade. O público participou na festa e deu-lhe sentido – fazendo-nos companhia, continuando a aceitar o convite que há três décadas lhe vimos fazendo.
Uma companhia de teatro é feita por quem lhe dá vida todos os dias mas também por todos/as aqueles/as que em determinados momentos se cruzam com o seu percurso e contribuem para escrever a sua história. Temos muito orgulho no conjunto de pessoas com as quais trabalhámos ao longo das 75 criações estreadas desde 1992. O encenador e cenógrafo Nuno Carinhas assume, entre elas, um lugar de destaque. Responsável pela encenação do nosso primeiro espectáculo vicentino pós-Auto da Índia (uma feliz herança que trouxemos do TEUC, pela mão de Rogério de Carvalho), Carinhas entrou na vida da companhia numa fase decisiva. No final de 1993, com pouco mais de um ano de actividade, A Escola da Noite tentava ainda provar a si própria que fora acertada a escolha de começar a fazer o seu caminho. Comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra, estreado no Teatro Avenida de Coimbra com uma equipa de profissionais muito jovens (do elenco à cenografia, dos figurinos à produção) deixou marcas que ainda hoje perduram no grupo e que integram as boas-vindas que gostamos de dar a quem a nós se vai juntando: o gosto pela experimentação e pelo risco, a “soltura ao gozo da representação”, a abordagem aos textos antigos, tirando o maior prazer da sua “escrita fina” e do seu “sabor”.
No texto que então escreveu para o programa do espectáculo, o encenador definia-se, com a simpatia e a modéstia que o país teatral lhe reconhece até hoje, como um “intruso convidado” e “uma figura de mediação”, que ali não fazia mais do que “ajudar a tornar cómodo e gostoso o que era impedimento”,“facilitar acessos a energias inexploradas” e “assistir às repetições, somando e subtraindo sinais, sem deixar que o desejo de cristalização antecedesse a exploração das possibilidades líquidas”. Como se isto fosse pouco; como se isto, para além de essencial na criação de um espectáculo, não fosse também um elemento central para a construção de uma companhia.
Com sabedoria e generosidade, consciente do que tinha feito em Coimbra e com a nossa trupe, Carinhas encerrava assim o seu texto, com palavras emprestadas por Liberata: “A la ventura sagrada / lo dexo y sálgome afuera”.
E assim fez, abrindo-nos caminhos – a prenda maior que em arte se pode oferecer.
Ao longo de trinta anos, mesmo à distância, continuámos a aprender com ele: com as encenações, as cenografias e os figurinos que criou para tantos/as colegas de profissão e estruturas congéneres, os textos e os/as autores/as que trouxe para o teatro português, as óperas que dirigiu, a forma exemplar como assumiu e concretizou a missão de serviço público do Teatro Nacional São João.
Foi por tudo isto que quisemos convidar Nuno Carinhas para celebrar os trinta anos de uma companhia que também é sua – a ventura, por mais sagrada que seja, nunca actua sozinha.
A resposta que obtivemos confirma tudo o que já sabíamos e ultrapassa as expectativas. À honra e ao prazer que nos dá ao aceitar voltar a trabalhar connosco, o encenador e mestre juntou ofertas adicionais: um texto e um autor que não conhecíamos bem, a oportunidade de trabalharmos pela primeira vez com a actriz Rita Brütt, o cenógrafo Henrique Pimentel e o tradutor Paulo Marques Dias, a oportunidade de voltarmos a contar com a colaboração de Filomena Louro, especialista em teatro irlandês que assina um texto inédito neste programa. Fiel ao que há tantos anos vem fazendo com o teatro em Portugal, Carinhas continua a abrir caminhos. E nós – profissionais e espectadores/as – somos seus beneficiários directos.
Na conversa com a equipa artística do espectáculo que à frente transcrevemos, Carinhas afirma que o espectáculo que aqui construiu, a partir de um texto que não é, à partida,“sobre o teatro”, é uma peça “com a força do teatro”, “com a força que o teatro pode ter hoje em dia, como o lugar onde se conta”. E lembra, elogiando as personagens criadas por Tom Murphy, a importância desse lugar e dessa capacidade das personagens “se contarem e nos contarem”.
Numa entrevista de 2012,Tom Murphy assume a dificuldade em responder à pergunta sobre as razões que fazem as pessoas ir ao teatro: “Bem, eu gosto muito do circo. A celebração de estarmos vivos. Mas penso que o teatro é a forma viva. Acho que é a melhor resposta que consigo dar”.
Com as suas inquietações, os seus diálogos interiores, os seus alter egos, os seus armários suspensos, os seus muros em vielas esconsas, os seus dramas pessoais e existenciais e as suas ilusões perdidas ao longo das três décadas de vida que nos dá a conhecer, Alice decide continuar, nessa “selvagem realidade de estar viva”, mesmo admitindo “que o pior tenha acontecido e que a realidade da coisa deixe muito a desejar”.
Nós também continuamos, se calhar inspirados por um coelho branco que, com insistência, nos pede que não nos atrasemos.
A Escola da Noite
27 de Março de 2023