António Augusto Barros, José Bernardes e Helena Genésio, directora do Teatro Municipal de Bragança
José Augusto Cardoso Bernardes, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, proferiu ontem em Bragança a conferência “Gil Vicente no seu tempo e no nosso tempo”. A iniciativa assinalou o arranque da mini-temporada que as companhias A Escola da Noite e o Cendrev realizam esta semana no Teatro Municipal de Bragança, com a co-produção “Embarcação do Inferno”.
Referindo-se aos desafios que a obra de Gil Vicente coloca aos espectadores de hoje, 500 anos depois da época em que foi escrita e apresentada, o prestigiado vicentista reconheceu “a estranheza” que as peças de Vicente podem colocar aos artistas e aos espectadores contemporâneos. Para lidar com ela, é necessário “assumir o incómodo de fazer uma viagem ao século XVI” e compreender os seus textos à luz dos valores da época. Como acontece com toda a boa literatura e o bom teatro, afirmou, a obra de Vicente convida-nos “a sair de nós”, “desinstala-nos” e incita-nos ao “descentramento”.
Só assim, exemplificou Bernardes a propósito das personagens de “Embarcação do Inferno”, é possível entender os casos do Judeu que é condenado apenas por ser Judeu, do Enforcado que é alvo de uma segunda condenação post-mortem ou ainda dos Cavaleiros, “salvos apenas porque morreram nas partes d’além”.
Lembrando Paulo Quintela
No debate que se seguiu à palestra, e a partir de uma intervenção do público, a ocasião serviu ainda para lembrar a figura e a obra de Paulo Quintela, intelectual bragantino que foi, a partir da Universidade de Coimbra e do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, o “grande divulgador da obra vicentina no século XX”. José Bernardes, que se confessou seu devedor, afirmou que foi Quintela quem deu a Gil Vicente a “dignidade universitária” e salientou a importância que os seus estudos tiveram para tirar o dramaturgo “da redoma nacionalista em que estava enfiado” nas décadas de 1940 e 1950 . Foi Paulo Quintela – lembrou – que demonstrou como Vicente se integra “na grande tradição do teatro medieval europeu”. Na abertura da conferência, António Augusto Barros, director artístico d’A Escola da Noite e co-encenador do espectáculo, lembrara também a importância do trabalho de Paulo Quintela, cuja versão do texto é aliás a versão escolhida para o presente espectáculo.
Um programa completo para festejar os 500 anos da Barca
“Embarcação do Inferno” é uma criação d’A Escola da Noite – Grupo de Teatro de Coimbra e do Cendrev – Centro Dramático de Évora. Para além do espectáculo, apresentado em co-produção e estreado no passado mês de Outubro, a iniciativa inclui oficinas para professores e um ciclo de conferências, comissariado pelo próprio José Bernardes, consultor científico do projecto. Levado a cabo por duas das companhias portuguesas que mais regular e aprofundadamente trabalham o reportório vicentino, este conjunto de actividades assinala os 500 anos da primeira apresentação e da primeira edição do mais conhecido texto vicentino, também conhecido como “Auto da Barca do Inferno”. Depois das temporadas em Évora e Coimbra, o projecto estará em digressão nacional ao longo dos anos de 2017 e 2018, com passagens pelas principais cidades e salas do país. Em Bragança, o espectáculo pode ser visto amanhã, 12 de Janeiro (às 10h30 e às 15h00, em duas sessões para o público escolar) e na sexta-feira, 13 de Janeiro (às 21h00, para o público em geral). De hoje até sábado, tem lugar, também no Teatro Municipal, uma oficina para professores com 12 horas de duração. O director artístico d’A Escola da Noite salientou o gosto especial pelo facto de a digressão de 2017 estar a começar em Bragança, numa casa onde “sempre somos muito bem recebidos” e que uma vez mais demonstra a sua “abertura à criação artística nacional”.
Nas duas próximas semanas, o projecto ruma a Aveiro e a Viana do Castelo e em Março tem apresentações já confirmadas nas Caldas da Rainha e no Barreiro.