“Fragmentos são sementes” (*)

O fragmento é, pela sua natureza, um ponto onde se inicia;
um fragmento nunca termina, mas é raro um fragmento não começar algo.
Poderemos dizer que o fragmento é uma máquina de produzir inícios,
uma máquina da linguagem, das formas de utilizar linguagem,
que produz começos — pois tal é a sua natureza.

Gonçalo M.Tavares, Atlas do corpo e da imaginação. Alfragide. Editorial Caminho, 2013: 41

© Eduardo Pinto

É um material intranquilo, a ideia…
Esta qualificação dupla — dita por uma Excelência a outra, num dos diálogos que escolhemos — pode ser aplicada ao conjunto da obra de Gonçalo M.Tavares.
“É um poeta-filósofo”(1), disse recentemente o nosso camarada João Brites, do Teatro O Bando, que por estes dias, com “A Porta”, volta a experimentar transpor para o palco as suas palavras, treze anos depois de “Jerusalém”, um dos primeiros espectáculos que tivemos o prazer de acolher no TCSB.

Questionado sobre a presença do “horror e do grotesco” nas suas obras, Gonçalo M.Tavares assumia em 2018 que “a Literatura parte da perversão”, no sentido em que percorre o “verso, o lado oposto, o lado que está escondido, o lado que não está visível, o obscuro”. A literatura — acrescentou — “parte desta ideia de que alguma coisa perturba, alguma coisa está perturbada, e por isso se fala, por isso escrevemos. Se tudo estivesse bem, se tudo estivesse tranquilo, não precisaríamos falar, não precisaríamos escrever”(2).

Não compete à arte mitigar a intranquilidade do mundo. A arte pode ajudar-nos a percebê-la melhor, a suscitar o pensamento sobre essa intranquilidade: “A ficção é uma investigação social e humana, é assim que eu a vejo, e portanto não separo a ficção da reflexão. Gostava muito que toda a ficção fosse um início de um pensamento, início de uma reflexão, não gosto da ideia de ficção enquanto passatempo, não acho que seja aceitável”(3).

Talvez isto explique porque é tão difícil resistir à tentação de ler os livros de Gonçalo M.Tavares de lápis na mão, sublinhando e transcrevendo perguntas, contradições, dicotomias, raciocínios lógicos, inquietações, perplexidades. E que sintamos necessidade de voltar a eles repetidas vezes, não à procura de soluções, antes em busca da formulação do problema que foi ou passou a ser capaz de nos interpelar.
“Poeta-filósofo”, de facto. Que no caso destes “Diálogos” não esconde sequer a influência da forma de Platão: “É o outro, através de suas questões, de suas frases, que faz que eu diga algo novo para mim, portanto o diálogo não é um somatório de monólogos, é mesmo uma possibilidade de descobrir coisas diferentes”, ler-se-á mais à frente.

Entre a miscigenação de géneros literários assumidamente praticada por Gonçalo M.Tavares, esta atenção ao (que diz e pensa o) outro e à intranquilidade do mundo parece encontrar um espaço privilegiado na forma do fragmento (“Livro da Dança”, “Breves notas…”, “Atlas do corpo e da imaginação”, entre outros). João Barrento, que em 2009 nos ajudou a encontrar o título para o espectáculo que construímos a partir de Kafka, volta a iluminar-nos agora, num conjunto de reflexões reunidas sob o título “O género intranquilo: anatomia do ensaio e do fragmento”(4):

“O fragmento é uma forma que tende para a sociabilidade, pressuposto fundamental da poética romântica da anulação das fronteiras entre os géneros”.

“O fragmento é quase sempre uma janela que se abre”; “estimula o prazer dos (re)inícios e o receio da conclusão”; “amplifica o que enuncia a partir de uma imagem ou de um conceito: como a semente a germinar”.

“O fragmento é uma ilha, mas num arquipélago, vive e morre na relação com os outros. Cada colectânea de fragmentos é um contínuo sempre em aberto”.

Eis a razão deste programa. Quisemos partilhar com o público uma parte do bloco de notas que fomos construindo na preparação do espectáculo. Sem qualquer pretensão de antologia, sugerimos uma viagem possível por algumas das páginas cujos cantos dobrámos enquanto líamos ou relíamos a obra de Gonçalo M.Tavares, agora à luz de “Cidade, Diálogos”: uma janela mais sobre alguns dos seus livros; uma nova semente para diferentes leituras; um outro contínuo que permanecerá em aberto enquanto houver leitores e espectadores.

Trata-se, enfim, da nossa própria e modesta máquina de produzir inícios, à qual acrescentamos, ainda inspirados pelo autor, duas ou três ligações — da nossa lavra, mas com a certeza de que se tratam de amigos em comum.
Percorrer a obra de Gonçalo M.Tavares é também conhecer ou redescobrir as vozes dos outros que ele convoca para pensarem com ele, em diálogos que tem a generosidade de fazer à nossa frente, ajudando-nos a “abrir caminho (próprio) por entre os escombros do que foi pensado”(5).

“Depois de tu pensares eu tenho mais armas para continuar a pensar, eis um facto que deve merecer agradecimento”. E nós agradecemos-te, Gonçalo.

A Escola da Noite, Maio de 2021

* título da antologia de fragmentos de Novalis, com tradução e introdução de João Barrento (Roma Editora, 2006)
(1) Jornal de Letras, 7 a 20/04/2021: 22
(2) QUIROGA, Carlos, “A Literatura parte da perversão: entrevista a Gonçalo M.Tavares”, Palavra Comum, 27/02/2018
(3) idem
(4) BARRENTO, João, O Género Intranquilo: anatomia do ensaio e do fragmento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010
(5) idem

CIDADE, DIÁLOGOS – PÁGINA DO ESPECTÁCULO

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