Ruína do Futuro

Abel Neves*

 

 

 

O homem é uma corda amarrada entre o animal e o super-homem – uma corda por cima de um abismo. Palavras de Nietzsche nas primeiras páginas do seu “Assim falava Zaratustra”. A vertigem da obra parece estar toda nesta formulação, que favorece uma imagem de condição e contingência, de acrobacia, de número de circo, de andança no trapézio, cá e lá, entre a consciência, o perigo e o esquecimento. Recordar Nietzsche, de relance, escrevendo, passeando e enlouquecendo em Turim, por exemplo, trará alguma iluminação à cidade inexistente de que gostaria eu de falar por aqui?

Um texto para o teatro acompanha estas linhas. Se lido com os olhos, o seu título não precisa de ser dito e entende-se a duplicidade. Desde logo uma dificuldade: para o dizer, duas vezes são precisas: Este Oeste Éden e Este Oeste Éden.

Nesta obra, como em todas, dizem-se e fazem-se coisas que são infinitamente menos do que as outras além da paisagem teatral e que acontecem nesta cidade, esta onde vivemos os instantes singulares, na medida das nossas possibilidades. Muitas vezes temos de intuir o que não está diante dos nossos sentidos no espaço da representação, que não nos é dito, mas simplesmente sugerido. E qual o motivo para que nem tudo seja revelado? Talvez porque, paradoxalmente, a realidade goste de esconder-se. Assistindo ao que é apresentado no palco, podemos pensar e viver mil outros fenómenos da nossa história que não estão ali presentes e que são, afinal, o que verdadeiramente interessa porque são o nosso património agora acrescentado e, portanto – espera-se – revitalizado. É, pois, para além da cena, nos aspectos que ocorrem ao espírito e que podem ser intuídos no pulsar do espectáculo, que o sentido mais total deverá ser conquistado. A vida farta-se de jogar deste modo: estamos, por exemplo, a viver um facto – a aproximação de uma tempestade – e simultaneamente pensamos como conseguiremos sobreviver; olhamos um desgraçado à porta duma igreja – e os seus olhos, sem fala, podem ser o brilho da fraqueza humana – e seguimos adiante; de vez em quando pensamos e exigimos a possibilidade de um mundo melhor para todos, mas queimamos a esperança de alguém que, na rua, nos pede um cigarrinho. Ocorre pensar se devemos ser, ou não, compassivos ou, mesmo, marionetas da compaixão, mas não é disso que se trata agora.

Uma cidade anunciada no teatro, com o seu nome a flashar numa intermitência de palavras ou de néon, ainda que seja parte do nosso querido burgo com todos os recantos que conhecemos, faz lembrar uma ruína do futuro, embora continue ainda a ser um dispositivo arquitectónico apressado, um organismo vivo. Um ruína do futuro porquê? Não sei bem, mas julgo que o anúncio, ou a presença virtual, de uma cidade no acontecimento do teatro lhe retira o estatuto – digamos – de lugar conhecido para ganhar a fama de sítio mudado ou transfigurado, passando a ser o lugar inexistente, a utopia. Por estranho que possa parecer, a mim, isto, lembra-me uma ruína do futuro. Mas tudo isto não passa, para já, e talvez, de má retórica. Temos, no entanto, de cumprir com as nossas obrigações e, arriscando, gostaria de entender-me com essa coisa da cidade como metáfora, mas… eu sei lá o que é uma metáfora!

Tenho uma boa dificuldade em fabricar teorias ou leis, não sei mesmo como se faz. Para isso teria de frequentar outros domínios, os da ciência e respeitando as regras do discurso complexo contribuir então para definições e modelos geradores de actividade exemplar. O que todos vamos compreendendo é que somos nós que fazemos a cidade, um pouco ao modo das rochas com os seus materiais aglomeradas. Existe o aglutinante na rocha fazendo dela o conglomerado. Tudo o que promove a vida social – amores, ideais, segredos, trabalhos, lazer, esperanças – é aglutinante na constituição da cidade, reunindo os moradores, e também os nómadas de passagem, numa dança que é, por si, o que de mais secreto tem uma cidade: a arte do seu movimento.

Ânimo! É preciso continuar a acreditar na humanidade. Por mim, tenho feito o meu possível. A humanidade é uma família com os seus encantos, nódoas e desorientações. Bom, não é que eu queira dizer, ou saiba sequer dizer, o que ela é ou deixa de ser, mas sou tentado a fazer a afirmação e porque a família está presente, do princípio ao fim, em Este Oeste Éden e porque as famílias também moram nas cidades. Como se isso fosse uma chave para qualquer outra coisa, outra fórmula de nos fazermos companhia neste mundo. O aglomerado que é a humanidade, disseminado pela crosta terrestre, tende para sacrifícios inúteis, para disparates inacreditáveis, mas também para orgias de beleza e sentimentos duma elegância próxima, ou mesmo semelhante, à dança majestosa do cosmo. Há muita arte e muita ciência que fazem rebrilhar o universo na sua expansão e podemos compreender que temos uma inteligência curiosa e suficiente para buscarmos no teatro, por exemplo, as melhores instruções para construirmos a cidade ideal, aquela que oferece mais ar e menos constrangimento, mais oportunidades e menos desassossego, embora o desassossego até agrade a quem chega a uma cidade porque é o nervo agitado, o desequilíbrio biológico, a catadupa de acontecimentos que estimulam a graça de uma urbe e a paixão dos seus habitantes. E o teatro pode agitar os ânimos, oferecer as paisagens que ainda não foram vistas nem intuídas; pode ajudar a novas cartografias, a polvilhar com espírito as novíssimas redes de comunicação que enriquecem o entendimento. Não consigo mais do que estes pobres indicadores de trânsito, estas linhas desconexas à procura de um destino, embora, julgo, não atrapalhadas. Um pouco como os rastos de luz que ficam numa fotografia nocturna sobre um eixo rodoviário. Aí estamos numa imensidão de impulsos nervosos, entre jogos de palavras e acções instintivas ou elaboradas com propósito. Procuramos a criatividade e nas suas praças uma cidade precisa de jogos infantis, da correria da miudagem, das algazarras, das tropelias, dos risos e das maluquices. Precisamos de brincadeira nas moradias, nos jardins, nas ruas, de ver materializada ao ar livre as novas energias. Sem isso, sem nos apercebermos sequer de que há crianças e pássaros nas metrópoles como poderemos inventar lugares mais inteligentes e aprazíveis para a humanidade que irá chegar e que são muitos desses que agora, dentro das casas, nas suas playstations, não vemos a brincar directamente com o mundo? Há que devolver as ruas à brincadeira, aos namoros, ao prazer simples de uma brisa no rosto sem a preocupação de um fogaréu poluente ou do perigo que é, simplesmente, estar vivo. Sem criatividade estamos lixados e uma cidade que não promova os seus teatros, que não faça pensar nas suas árvores, nos seus canteiros de flores, nas suas ruas de comércio múltiplo, tradicional e aberto sem estar confinado à desgraça dos centros comerciais com os seus ares condicionados, será uma cidade povoada de gente desanimada, ou animada com tristeza, que provavelmente nem sabe que se deixa enganar, ou sabe mas já nem se importa, gente a quem se vai raspando a alma, livrando-a dos argumentos para uma vida melhor, tornando-a dócil e sem vontade, cumpridora dos deveres e muito pouco apta já a considerar os seus direitos. Gente assim não poderá pensar em lugares imaginários porque os espectros não pensam, e a cidade será – descubro agora – uma metáfora de qualquer coisa insolente e radioactiva e querendo insinuar-se como outro lugar sempre mais moderno, sempre em mutação, como os vírus. Criatividade, insisto. Mãos gentis sobre a paisagem, acerto nas falas se se pretende o diálogo, lábios sinceros, respeito e confiança nos modos, coração aberto, humor e sentido de justiça, qualquer justiça, eis o que poderá tornar uma cidade mais digna de elogio, capaz de ser, desde a sua origem no passado, um lugar para o futuro.

Se na sombra destas linhas está presente o texto Este Oeste Éden – que vai tomando de vez em quando a luz como por entre as ramagens de um bosque num bom dia de Verão – e por não ser ainda do vosso conhecimento, permitam-me que vos apresente o seu argumento, ainda que breve.

“O que é preciso é cultivar o nosso jardim”, diz Voltaire no final do seu Cândido. E será um lugar selvagem ou um lugar de cultura? Que gosto religioso é este, o do jardim? Que interesse amoroso existe em Carol, criadora de tudo o que há na obra e que vai manobrando espaço e personagens? Este Oeste Éden está dedicado a quem ainda acredita, pelo menos, no sonho de um jardim, que não ainda este. Há dois Tempos em Este Oeste Éden: “Universo” (antes e depois do nascimento de Joel, filho de Marian e de um desconhecido) e “Multiverso” (quando Joel com a sua mulher, Fátima, cuida da sua casa, do jardim, e os filhos crescem).

Universo: no jardim que é o mundo, Josen, um velho homem, caminha com a sua velha mulher, grávida de um outro homem, em direcção à casa com que sempre sonharam. Sabemos que é a guerra que tem alimentado a esperança de uma casa, num jardim. Diz Josen: “A humanidade é o que nos faz viver, e nós mantemos a humanidade viva.”. Há o amor entre eles, e diz Marian, grávida de outro homem (talvez até um anjo) : “Tu amas-me, Josen? Quero dizer, mesmo a sério?” Responde Josen: “Esse filho não é meu. Não achas que é amar-te a sério?” E mais tarde, Marian: “Precisávamos deste filho.” E diz Josen: “Precisávamos, sim. Agora somos uma família”. E ainda mais tarde, Marian: “Sabes… às vezes parece-me que quanto mais queremos compreender as coisas mais elas nos escapam. (…) Não achas que o mundo está a ficar com medo dos pobres?”. Marian dará à luz Joel e morrerá depois no bombardeamento de uma guerra, e Josen, com um agnus dei nos braços, nunca compreenderá nem aceitará.

Multiverso: Carol, a Dama do Leite, a criadora de tudo, apresenta-se, e também Joel e Fátima, que cuidam do seu jardim depois de terem constituído família, os filhos Jonas e Luna. Luna tem ciúme de Linda, a rapariga que fugirá com Jonas para a selva da cidade, e que fugirá dele, depois, para voltar à terra e dando à luz o quinto filhote, o último cordeirinho. Jonas, pródigo, aparecerá mais tarde para roubar e ferir de morte o pai e para resgatar a irmã, regressando a Lisboa onde ela se dedicará à prostituição. Carol ressuscita Joel e ele acaba por procurar a filha no labirinto da cidade. Ao encontrá-la, mascarado, irreconhecível, tenta, depois, violá-la e ela morre, saltando do seu quarto para a rua. Jonas dá de caras com o pai, na cama de Luna, e aperta-lhe o pescoço, matando-o. Eis uma família numa casinha do mundo e com jardim. A família pode ser a ruína da humanidade? Carol ainda faz aparecer Josen para um diálogo no jardim, e este Josen vem pedir-lhe explicações sobre a morte da mulher, Marian, mas Carol – fazendo até as vezes de uma estranha e irritante sacerdotisa que não gosta de conflito – esconde-se atrás das personagens, reunindo-as ao seu gosto. “Nem sempre dizemos bem as coisas, nem sempre articulamos as certezas com as dúvidas, e por isso deixei que andassem ao sabor… de tudo isto.” E Josen: “Humanidade… do que precisamos é de humanidade, mas que seja capaz de compreender o mundo… humanidade dessa ainda não há.”

Podia ter ido mais longe, podia ter sido mais inclemente (ou algumas das personagens muito mais ásperas). Fui até onde me foi possível dando responsabilidade a quem a tem no andar da obra. Se fosse mais adiante, se se pusesse o problema de emendar a humanidade, uma moral religiosa quase necessariamente teria de revelar-se e eu não sei dar instruções de moral ou religião. Talvez se procurem, ou encontrem, sentidos de cidade em Este Oeste Éden. Fora do teatro também nos interrogamos e procuramos sentidos. O mistério sempre continua. Interrogo-me muitas vezes, e talvez outros se interroguem também, se a humanidade vale a pena tal como a conhecemos e mais ou menos intuímos que venha a ser a partir do que, precisamente, conhecemos. Muito mais poderosa do que a nossa inteligência bailando no cérebro é a Natureza. Melhor é seguirmos no seu movimento e que é parte do mistério todo. Nenhum triunfo sobre a Natureza está assegurado, nenhum conhecimento está completo. Nisto talvez resida a esperança de qualquer coisa e como o teatro continuará a ser um dos lugares por excelência de renovação das utopias, bom é pensar que será no teatro que podemos alcançar o que nos é negado fora dele e de modo a conseguirmos, aqui, outras e melhores respirações. Mas, respirar melhor para quê? Gostaria de, ao menos, conseguir descrever o alto miradouro da cidade inexistente e adivinhar o vento regenerador, subtil ou não, que pode descer das alturas. Gostaria de ver, para além da tal cidade, a ondulação prodigiosa das searas e o ouro das espigas assegurado por mãos belas e comuns. São muitos os que neste mundo ainda procuram o ouro que não existe e apesar da proximidade com estes garimpeiros, não quero largar neste escrito os vestígios de um qualquer idealismo, ainda que inconsistente, pois que, quase inevitavelmente, seria adoçar com palavrinhas o que exige gesto e movimento. Pode durar cinco mil anos ou uma qualquer eternidade, mas uma cidade, hoje, será uma ruína amanhã e não é por isso que deixamos de viver. Adiante, pois, com o trabalho e os dias.

 

Coimbra, A Escola da Noite/Teatro da Cerca de S. Bernardo, Julho de 2009

* Comunicação apresentada na Mesa “A Cidade como Metáfora”, integrada no Seminário Internacional Espectáculo/Teatro/Cidade, organizado pelo Núcleo de Estudos sobre as Cidades e Culturas Urbanas do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra entre 1 e 3 de Julho de 2009.

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One Response to “Ruína do Futuro”

  1. Susana diz:

    …”tende para sacrifícios inúteis, para disparates inacreditáveis, mas também para orgias de beleza e sentimentos duma elegância próxima, ou mesmo semelhante, à dança majestosa do cosmo.”
    “gente a quem se vai raspando a alma, livrando-a dos argumentos para uma vida melhor”…”Gente assim não poderá pensar em lugares imaginários porque os espectros não pensam”