O fim da estrada

SARABELA
Quando eu nasci,
já a guerra era antiga.
Já ninguém sabia como começara
ou porquê,
mas continuava, ainda,
mais velha que os meus pais e os meus avós, mais antiga que os pais dos avós dos meus avós.

© Eduardo Pinto

Espanha, 2014. Polícia dispara balas de borracha e gás lacrimogéneo contra imigrantes que tentam chegar a nado à praia de El Tarajal, em Ceuta.
Hungria, 2015. Governo conclui a instalação de uma vedação de arame farpado com 41 quilómetros, ao longo da fronteira com a Croácia, para travar o fluxo de imigrantes. Uma vedação semelhante, com 175 quilómetros, havia já sido edificada na fronteira com a Sérvia.
Itália, 2019. Governo proíbe durante três semanas a atracagem do navio Open Arms, que transportava 147 pessoas resgatadas no Mar Mediterrâneo, ao largo da costa da Líbia.
Reino Unido, 2022. Primeiro-ministro anuncia plano para deportar para o Ruanda imigrantes que entrarem ilegalmente no país.
Espanha, 2022. Mais de trezentos imigrantes são agredidos enquanto agonizam ao sol, numa vala encostada à vedação que haviam saltado, entre Marrocos e Melilla. Primeiro-ministro elogia actuação das polícias marroquina e espanhola.

Quando nos lembramos destes acontecimentos, sabendo que são apenas exemplos, percebemos que o conceito de “Europa-fortaleza” está longe de ser uma metáfora. Entendemos melhor quais são os “valores europeus” defendidos por quem governa os países da “Europa civilizada”. Torna-se uma evidência que “a guerra” não começou agora, que “a guerra” não acabou nunca. Apenas parecia mais longe, enquanto as vítimas não eram tidas como “a nossa gente”, enquanto “não atentava contra o nosso modo de vida, o nosso poder de compra e a nossa segurança (incluindo económica)”. Talvez um dia alguém peça desculpa pelo que hoje está a ser feito, em nosso nome e por governos que elegemos. Entretanto, o portão está fechado e há gente a morrer.

Mas isto são notícias e opiniões publicadas. É outro o lugar do Teatro. Tal como Clausewitz, o actor polaco que foge da II Guerra Mundial em “Novas Diretrizes em Tempos de Paz”, de Bosco Brasil, nós não sabemos carregar uma arma nem curar uma ferida. Podemos apenas estar presentes. “E guardar na memória”. Para exorcizar o seu “sentimento de impotência”, Igor Lebreaud escreveu uma peça fora de qualquer “tempo ou lugar concreto”, este “eco do passado e do futuro” que agora ganha forma de espectáculo. No ano em que comemoramos o trigésimo aniversário da companhia, festejamos também a estreia na escrita teatral e na encenação de um actor da casa, que há 13 anos contribui, todos os dias, para fortalecer o grupo, para a construção da nossa linguagem, para clarificar as escolhas sobre o que queremos e precisamos de dizer, para a reflexão colectiva – de que não abdicamos – sobre a ética no acto de criação artística. Ao oferecer-nos a possibilidade de fazermos nosso o texto que escreveu, o Igor permite-nos partilhar com o público o orgulho que sentimos por tê-lo connosco. Beneficiando do privilégio de sermos seus companheiros de estrada, encontramos nesta obra outros ecos, de passos que demos em conjunto. Isso torna tudo mais bonito. E ajuda-nos a formular sentidos para o que vimos fazendo.

“A minha arte é estar aqui convosco / E ser-vos alimento e companhia na viagem” – escreveu José Mário Branco, sem perder a esperança, nem a força, nem a alegria.
É que não é pouco, isto de nos fazermos juntos ao caminho e de juntos desafiarmos os fins da estrada que tentam impor-nos.

A Escola da Noite
Setembro de 2022

[AQUI, ONDE ACABA A ESTRADA — Página do espectáculo]

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