homem, cidade
Também nos sistemas de compreensão do mundo podem por vezes ver-se contracções e relaxamentos como os visíveis no vulgar músculo de um mamífero. Como é sabido, a contracção visa quase sempre a acção — o ataque e a defesa — e quando, pelo contrário, o músculo relaxa, é porque de nada tem medo, o meio que o envolve não o inquieta e por isso, no limite, pode até adormecer. Como o rápido estudo da fisiologia corporal mostra, relaxamentos sucessivos, sem tensões nem contracções intervaladas, provocam uma lenta, mas inequívoca, decadência dos tecidos. Sem a presença visível de adversários, os músculos preparam, meticulosamente, a própria derrota.
Gonçalo M.Tavares, “Breves notas sobre o Medo”, Enciclopédia 1-2-3.Lisboa, Relógio d’Água: 191
Por mais perfeita que seja a reprodução, uma coisa lhe falta: o aqui e o agora da obra de arte — a sua existência única no lugar onde se encontra.
Walter Benjamin
O pensamento, a linguagem, a imaginação, as artes são matéria que surge com persistência na obra de Gonçalo M. Tavares.
E a cidade, essa grande invenção do homem, essa invenção a celebrar.
Os textos de Gonçalo M.Tavares são há muito convocados para a mesa de trabalho do laboratório interno da companhia, de onde às vezes saem espectáculos.
Entre eles, este livro estranho, com duas partes
(autónomas?)
diálogos que não são teatro
e monólogos
(um?)
sem contexto claro, que até podem ser diálogos.
Estávamos no segundo confinamento, à janela, a comprovar pela carência que o nosso trabalho é provocar encontros. Físicos. E com eles diálogos, perguntas, acções que ajudem a evitar a decadência dos tecidos.
Testámo-nos, juntámo-nos quando ainda era quase proibido, olhámo-nos, debatemos e avançámos. Como quem
ensaia a dança.
Assim construímos esta espécie de praça pública, em que agora vos convidamos a sentarem-se — frente a frente, a dois metros da respiração e da transpiração dos actores.
Cá dentro inquietação
Com o que se vê,com o lugar de onde se vê, com a forma como se vê.
Com o que se diz, com o lugar de onde se fala, com o lugar de onde se escuta, com a forma como se diz. Com os diálogos que apenas servem para trocar conclusões, que começam com um ponto final.
Com os simulacros de diálogos, essa fase superior do exercício monológico do poder.
inquietação
com o homem, com a cidade, com
O homem na cidade
Houve já quem nos perguntasse se estes diálogos são sobre
o malmequer desta cidade
São sobre eles próprios, são o que virem neles, do lugar que vos calhar ou que escolherem.
São convites à imaginação, essa coisa antiga. O humano pisa o chão pela primeira vez já com a cabeça saltitante, escreveu há dias Gonçalo M.Tavares.
São excêntricos os olhares e os discursos das Excelências que vereis caminhar à vossa frente. Ajudam por isso a destapar o invisível, a encontrar formas diversas de olhar para a cidade, de viver a cidade, de construir a cidade. Eis o teatro — theatron, “lugar para olhar” — cumprindo a etimologia, a ajudar cada um de nós a participar no mundo.
Eis como gostamos de pensar e de fazer teatro: sinalizando, pesquisando, escavando, pensando nas raízes, multiplicando possibilidades de leitura — com os instrumentos e a linguagem próprios desta arte.
Eis como gostamos de pensar a cidade, de fazer parte dela, de lhe lançar propostas, a cada projecto artístico.
Como
quem por força da vontade
De trabalhar nunca se cansa.
A Escola da Noite
Maio de 2021