CELEBRAR AMÍLCAR CABRAL – Amílcar Geração e Comemorações em Coimbra do Centenário de Amílcar Cabral
A conversa foi há quase dois anos. De visita à cidade, Ângelo Torres, que é há muito companheiro de estrada da Cena Lusófona e d’A Escola da Noite, disse que seria bonito trazer a Coimbra o espectáculo que tinha feito com Guilherme Mendonça. Uns meses antes, na Guiné-Bissau, uma outra voz amiga tinha- nos feito chegar ecos da estreia apoteótica do espectáculo em Cabo Verde, no Mindelact de 2021. Com entusiasmo partilhado, colocámos nas agendas: a 12 de Setembro de 2024, dia em que Amílcar Cabral faria 100 anos, receberíamos no Teatro da Cerca de São Bernardo “Amílcar Geração”.
A partir daí, foi crescendo a vontade de alargar as comemorações e a homenagem a Amílcar Cabral, referência e fonte de inspiração para quem, como tantas e tantos de nós, se revê nos ideais da liberdade, da auto-determinação dos povos, da luta anti-colonial e anti-imperialista, do combate ao fascismo, da recusa do racismo e de qualquer outro tipo de discriminação. Quem trabalha nas artes tem para com Amílcar uma dívida acrescida: o contributo que deu, há mais de cinquenta anos e enquanto decorria a luta armada, para a assunção da cultura como elemento de libertação e como eixo fundamental para a construção de um país e de uma identidade nacional. Devemos-lhe, ainda, a lucidez (e a coragem) com que distinguia a ditadura que governava Portugal do povo português, também ele vítima da opressão, da miséria e da exploração que lhe eram impostas. Defensor da colaboração entre os povos de Cabo Verde, Guiné-Bissau e Portugal, Amílcar Cabral valorizava o facto de falarmos a mesma língua, as possibilidades que isso abria no diálogo entre países independentes e livres, cada um dos quais construindo e narrando a sua própria história, desenvolvendo a sua cultura, estudando e consolidando as suas línguas nacionais. “A única coisa que podemos agradecer aos portugueses é o facto de nos terem deixado a sua língua, depois de terem roubado tanto na nossa terra” – afirmou, num seminário de quadros do PAIGC em Conakry, em 1969. É esse o sentido que A Escola da Noite e a Cena Lusófona sempre deram à palavra lusofonia: o privilégio de os povos de oito países se entenderem com facilidade e de poderem aproveitar essa circunstância para se conhecerem melhor e, reciprocamente, partilharem conhecimento. “A língua – explicava Amílcar na mesma circunstância – não é senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros, um meio para exprimirem as realidades da vida e do mundo”.
Não faria qualquer sentido fazermos a festa sozinhos. Começámos por isso a falar com pessoas – muitas pessoas, muitas instituições –, junto das quais fomos encontrando igual vontade de celebrar e divulgar o legado de Amílcar Cabral. Assim se construiu o programa deste ciclo, numa rede de cumplicidades e afectos mas também de responsabilidades, de compromissos com o interesse público, de sentimento de urgência face ao que vemos acontecer no Mundo e à actualidade do pensamento de Cabral.
“Amílcar Geração e Comemorações em Coimbra do centenário de Amílcar Cabral” inclui um espectáculo de teatro, um concerto, cinco apresentações de livros, quatro documentários e sete exposições/instalações. Em torno da sua concretização reuniram-se 16 entidades, entre as quais três bibliotecas, duas salas de espectáculos e um centro de artes da cidade, quatro editoras, duas organizações de guineenses e dois centros de investigação de referência. Nos vários debates agendados a propósito de livros e filmes – oportunidades para revelar e aprofundar diferentes facetas da vida e da influência da acção de Amílcar Cabral – participam mais de duas dezenas de convidados/as (cabo-verdianos/as, guineenses e portugueses/as). Simbolicamente, metade das receitas de bilheteira das duas únicas iniciativas com entrada paga (o espectáculo de teatro e o concerto de Nené Pereira) revertem para a produção do documentário “Amílcar Cabral e a luta de libertação”, de Flora Gomes e Sana Na N’hada. Que esta conjugação de vontades e de energias aconteça no ano em que se comemoram também os 50 anos do 25 de Abril é uma feliz coincidência que vem dar ainda mais sentido à jornada. A luta de libertação da Guiné-Bissau, liderada por Amílcar Cabral até ao seu assassinato, em 1973, deu um contributo decisivo para o derrube do fascismo em Portugal, como ele antecipava que iria acontecer, mas já não pôde testemunhar.
Reunirmo-nos hoje para celebrar esta dupla vitória de que nos falam Diana Andringa e Flora Gomes – “a independência da Guiné, a democracia para Portugal” – é, afinal, mais uma prova de que Cabral não morreu. Cabral ka mori. Cabral ka muri.
A Escola da Noite / Cena Lusófona
Coimbra, Setembro de 2024