“Aqui, onde acaba a estrada” — texto do encenador
Na inexorável marcha da humanidade através dos tempos, basta um breve olhar por cima do ombro para constatar que, quando uma guerra termina, logo há outra que começa. A barbaridade repete-se e reinventa-se, com dentes e garras erguendo-se sobre o amanhã.
Em 2018, decidi aventurar-me na escrita de um texto teatral que ajudasse, de alguma forma, a exorcizar o meu sentimento de impotência perante este incessante ciclo de violência. Mas como abordar o assunto? Onde e quando situar a acção? Falar da Síria ou da Faixa de Gaza? Da Segunda Guerra Mundial ou do Êxodo bíblico?
Apercebi-me então que necessitava de uma ficção que funcionasse como um eco do passado e do futuro. A acção não podia decorrer em nenhum tempo ou lugar concreto, porque tinha de ocorrer em todos os tempos e em todos os lugares. A língua estrangeira não podia ser nenhuma que existisse, mas sim um artifício que cruzasse vários idiomas. De súbito, ressurgiram duas ideias, que há muito me acompanhavam: o título e a imagem de um Portão no meio do deserto, ao qual chegava uma família arrastando uma caixa. Foi assim que, em três dias e de um só fôlego, arranquei à folha em branco o primeiro rascunho de “Aqui, onde acaba a estrada”.
Decorridos quatro anos, após uma vintena de revisões e uma leitura pública, eis que tenho o privilégio e a responsabilidade de colocar em cena a minha primeira peça de teatro.
Tratando-se de um texto deliberadamente lacónico nas indicações cénicas, foi necessário descobrir uma forma de o abordar. O nosso ponto de partida foi o equilíbrio entre tragédia grega e drama contemporâneo, entre poesia e terror, entre barreiras intransponíveis e fronteiras fictícias. É assim que, por exemplo, Sarabela funciona como Corifeu e o Portão desdenha de convenções espaciais.
No processo de tornar físico e concreto o que começara como pensamento abstracto, dei por mim rodeado de pessoas dotadas de uma imensa sensibilidade, inteligência e paixão. A confiança, entrega e criatividade de toda a equipa exige de mim mais gratidão do que algum dia saberei expressar.
É por isso que “Aqui, onde acaba a estrada” já não me pertence. É de toda a gente que fez parte desta viagem, de todas as pessoas que se juntam agora a nós, enquanto público. É de todas e todos que continuam a caminhar na esperança de, um dia, atravessar o Portão e que, légua após légua, vão entregando as suas canções ao vento.
Sim, uma guerra termina e outra começa. A estrada, porém, não acaba aqui.
Igor Lebreaud
Setembro de 2022