A nossa casa tomada

fotografia de ensaio © Mariana Banaco

No conto Casa Tomada, do escritor argentino Julio Cortázar, um casal de irmãos vê-se expulso gradualmente de sua casa por uma ameaça que não está identificada, mas que é suficientemente potente para obrigá-los a deixar o lugar de morada levando apenas a chave da porta – que, aliás, não terá mais qualquer serventia.

A trama do conto – que propõe uma situação de desalojamento, de força irresistível, de destino incontornável – serviu-me, há alguns anos, para compor um espetáculo, Não vejo Moscou da janela do meu quarto, no qual a casa era habitada por algumas das personagens de As três irmãs, de Anton Tchékov. O que esteve em jogo naquela produção foram os constituintes de passividade e apatia dos irmãos portenhos, metaforizando a alienação da classe média encastelada em suas fortalezas urbanas, disposta a fantasiar inimigos, mas sem conseguir vislumbrar, de fato, as verdadeiras ameaças.

Agora, uma vez mais, o conto de Cortázar constituiu o ponto de partida para a criação de uma nova fábula, que tem na ideia de deslocamento e de despossessão seu elemento estruturante. Desta feita, ele vem ecoar um outro contexto: a realidade de milhões de desterrados que, ao longo dos tempos, vêm sendo destituídos de lar e de cidadania.

(Abro um parêntese para afirmar que a porosidade do conto de Cortázar, abrigando tantas possíveis ressonâncias, apenas certifica a potência desse conto e a grandeza desse escritor).

Hoje a realidade de refugiados e exilados se impõe como tema. A todo momento, somos bombardeados nas televisões e redes sociais por imagens e relatos de fugas e perseguições, que se somam, na memória histórica, a outros cenários de guerra e de intolerância. Com o tempo, de algum modo, essas violências acabam sendo naturalizadas ao ponto de que não nos importamos mais e é preciso reafirmar constantemente que, sim, estamos implicados nessa realidade. Com a mesma insistência, precisamos dar testemunho e combater a intolerância e o chauvinismo que se espraiam veloz e ferozmente, e com igual intensidade, nos dois continentes que nos concernem.

Em nosso espetáculo, três atores e uma atriz compõem as figuras dos refugiados que substituem os irmãos do conto original, trocando os laços de sangue por relações sem vínculos, e a convivência forçada vai se tornando, aos poucos, solidariedade. Cada um(a) deles vem de um lugar distinto e tem uma história particular, da qual conhecemos apenas fragmentos; porém, todos poderiam ser um mesmo e único personagem, porque suas narrativas revelam idênticos constituintes de perdas e desalento. São histórias que se repetem sem muitas variações e com os mesmos traços de infortúnio.

A dramaturgia da nossa Casa Tomada foi elaborada coletivamente. Depois da fase inicial, de pesquisa
e coleta de materiais, fomos para a sala de ensaios, onde as propostas se somaram e foram desenvolvidas por meio de improvisações e escrita de textos.

A dramaturgia e a encenação realizaram-se em um mesmo e contínuo movimento. Paulatinamente, outros criadores foram se agregando e o espetáculo ganhou sua conformação final. Ele tem o rosto desse coletivo e é o nosso gesto de solidariedade e empatia para com essas populações em êxodo, assim como nosso clamor de indignação contra as forças que as ameaçam, não importam quais sejam, todas terríveis e condenáveis.

Um processo como esse é um empreendimento de alto risco, sabíamos disso desde o início. Ainda mais quando o tempo é curto – e foram apenas nove semanas, do primeiro encontro à estreia. No entanto, a dedicação e o talento de todos os envolvidos tornaram esse desafio uma experiência rica, profunda e prazerosa. Não fosse o comprometimento do elenco e da equipe técnica, bem como a total adesão de todos os envolvidos no processo, não teríamos chegado até aqui. Foi um processo sem embates e de grande fluidez, do qual eu particularmente me orgulho muito. Devo deixar registrado aqui o reconhecimento e a admiração que tenho por todos os integrantes dessa equipa maravilhosa, em especial a esse elenco estupendo que acreditou no projeto e deu tudo de si.

Para finalizar, quero expressar minha profunda gratidão à Escola da Noite e aos estimados António Augusto Barros e Pedro Rodrigues pelo convite para levar adiante este projeto. Vejo nele o selo que consolida algumas décadas de colaboração e, principalmente, da amizade que nos une.

Silvana Garcia
2 de Maio de 2024

[CASA TOMADA — Página do espectáculo]

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