Após dois meses e meio de paragem forçada, A Escola da Noite retomou os ensaios no início de Junho e prepara a estreia de duas novas criações, marcadas para os próximos meses de Setembro e Outubro. As inevitáveis alterações ao plano de actividades que estava previsto levaram a companhia de Coimbra de novo ao encontro do dramaturgo romeno Matéi Visniec. “Palhaço Velho, Precisa-se!” e “Do sexo da mulher como campo de batalha na Guerra da Bósnia” são as propostas do grupo para depois do Verão, no Teatro da Cerca de São Bernardo.
Autor de “Da sensação de elasticidade quando se marcha sobre cadáveres”, que A Escola da Noite apresentou em estreia mundial em Coimbra em 2014, Matéi Visniec continua a ser um dramaturgo particularmente caro à companhia, que encontra na sua vasta obra múltiplos desafios e motivos de interesse.
Nascido na Roménia em 1956, Visniec destacou-se na paisagem literária do seu país nos anos 80 do século XX. Os seus trabalhos foram proibidos pelo Governo de Nicolae Ceausescu e em 1987 exilou-se em França, onde continua a residir e trabalha como jornalista para a Radio France Internationale. Tem mais de 30 peças editadas e já foi representado em países como Itália, Grã-Bretanha, Polónia, Turquia, Suécia, Alemanha, Israel, Estados Unidos Canadá, Japão e Brasil. É o autor dramático vivo mais representado na Roménia e foi distinguido com o Prémio Europeu 2009 da SACD e com o Prémio “Coup de Coeur” (imprensa) no Festival Off de Avignon, em 2008 e em 2009, entre outros. Em Portugal, para além d’A Escola da Noite, viu espectáculos seus encenados pela Companhia de Teatro de Almada (2017), pela Seiva Trupe (2016), por A Bruxa Teatro (2003 e 2005) e pelo Teatro Extremo (2003).
A cultura como “espaço de liberdade e reflexão”
Matéi Visniec admite que encontrou na literatura um espaço de liberdade e de resistência contra os totalitarismos e reconhece a admiração por autores como Kafka, Dostoievski, Camus, Beckett, Ionesco e Lautréamont, bem como as influências de correntes artísticas como o surrealismo, o dadaísmo, o teatro do absurdo e do grotesco. No texto que, em 2014, escreveu para o programa do espectáculo d’A Escola da Noite, afirmava fazer “parte de uma geração que encontrou na resistência cultural a resposta para a lavagem ao cérebro, o seu orgulho e a sua dignidade”. “A cultura — acrescentava o escritor romeno — foi sempre um espaço de liberdade e de reflexão, de resistência contra a arregimentação do homem e contra a manipulação (pelas ‘grandes ideias’ mas também pela sociedade de consumo, pela publicidade, e pela indústria de entretenimento ou pela imagem, tão poderosa nos nossos dias)”.
Acreditando que a literatura é “o espelho do homem e dos seus sofrimentos, das suas dúvidas e dos seus combates”, Matéi Visniec oferece-nos nas duas peças agora trabalhadas pel’A Escola da Noite, escritas em diferentes momentos do seu percurso, a oportunidade de reflectirmos sobre alguns aspectos que marcam, por vezes de forma trágica, as sociedades europeias contemporâneas.
“Uma peça para o nosso tempo”
Em “Palhaço Velho, Precisa-se!” (“Petit Boulot pour vieux clown”, escrita em 1986), três palhaços velhos, com dificuldades económicas e sem trabalho, encontram-se numa sala de espera para uma entrevista de emprego. Alguém procura um “palhaço velho” para um “pequeno trabalho” e as três personagens precisam desesperadamente de provar que estão à altura da “oportunidade”. A alegria do reencontro, o confronto com as memórias de cada um e a competição em que se vêem envolvidos conjugam-se, no espaço apertado e claustrofóbico de uma sala de espera ante uma porta fechada, numa espécie de comédia trágica, com humor, tensão e perfídia. Em todos os países onde foi levada à cena têm sido identificadas as influências de “À espera de Godot”, de Samuel Beckett, também por se tratar de uma situação onde, aparentemente, “não acontece nada” para além dos (fortíssimos) diálogos entre personagens. Numa outra perspectiva, o crítico teatral dos Estados Unidos Peter Filichia escrevia em 2004: “é, definitivamente, uma peça para o nosso tempo. (…) Ela lida não só com a profunda ansiedade de um indívíduo que está desempregado mas também com o medo genuíno de que esteja demasiado velho para o mercado de trabalho.”
Com encenação de António Augusto Barros, interpretação de Igor Lebreaud, Miguel Magalhães e Ricardo Kalash, cenografia de João Mendes Ribeiro e Luísa Bebiano, figurinos de Ana Rosa Assunção e desenho de luz de Danilo Pinto, “Palhaço Velho, Precisa-se” estreará em Coimbra, no Teatro da Cerca de São Bernardo, em meados de Setembro.
A mulher como campo de batalha
“Do sexo da mulher como campo de batalha na guerra da Bósnia” (“La femme comme champ de bataille ou Du sexe de la femme comme champ de bataille dans la guerre en Bosnie”, escrita em 1996) evidencia no seu próprio título o assunto que nos é proposto. Dorra foi violada durante a Guerra da Bósnia (1992-1995) e está internada na Alemanha, onde conhece Kate, psicóloga norte-americana que integrou uma equipa de especialistas em abrir valas comuns no chão da antiga Jugoslávia. A peça é um pujante retrato da guerra e da forma particular como, nesta e em outras guerras, as mulheres são vítimas directas e indirectas da barbárie. A memória da Guerra da Bósnia convoca-nos inevitavelmente para uma reflexão sobre os nacionalismos, a xenofobia e “os clichés, os lugares-comuns e as maldades” que demasiadas vezes marcam a relação dos indivíduos com “o outro”.
Com tradução, encenação e interpretação de Ana Teresa Santos e Sofia Lobo, figurinos e adereços de Ana Rosa Assunção, desenho de luz de Danilo Pinto e sonoplastia de Zé Diogo, “Do sexo da mulher como campo de batalha na guerra da Bósnia” estreia em Outubro, também no Teatro da Cerca de São Bernardo, depois da temporada de “Palhaço Velho, Precisa-se!”.
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