“Um Sonho”
A finalidade do jogo de sonho não é, pois, engendrar um “outro mundo” ou o que se poderia chamar de um “universo alternativo”. Não, ela consiste em oferecer um ponto de observação sobre o mundo – ponto de afastamento e de tensão (como acontece com a flecha no arco retesado) a partir do qual a ficção teatral pode visar, atingir, penetrar no coração do real.
Jean-Pierre Sarrazac, “Jogo de sonho: uma dramaturgia do entre-dois”
(2001, trad. Fátima Saadi)

Depois de “O Abajur Lilás”, de Plínio Marcos (2012) e de “Embarcação do Inferno” e “Floresta de Enganos”, de Gil Vicente (2016 e 2021, respectivamente), o Cendrev e A Escola da Noite voltam a juntar equipas e vontades na construção de um espectáculo.
Para as comemorações dos cinquenta anos do Centro Dramático de Évora, escolhemos trabalhar uma das mais emblemáticas obras de August Strindberg (1849-1912), dramaturgo, romancista, pintor e fotógrafo sueco sobre o qual recaem epítetos grandiosos: visionário, transgressor, revolucionário, pai do teatro moderno, precursor do expressionismo e do surrealismo, figura inspiradora de inúmeros autores contemporâneos (Adamov, Cocteau, entre outros) e do encenador e realizador Ingmar Bergman. Trabalhamos com a tradução feita em 1998, para a Cornucópia, por Cristina Reis, Luís Miguel Cintra e Melanie Mederlind, a quem muito agradecemos a respectiva autorização.
“Um Sonho” foi escrita em 1901 e encenada pela primeira vez em 1907. O autor procura reproduzir em linguagem dramática a forma “incoerente, mas aparentemente lógica” como se encadeiam os acontecimentos e as personagens nos nossos sonhos. Num sonho – escreveu o próprio autor sobre esta peça – “tudo pode acontecer, tudo é possível e verosímil. O tempo e o espaço não existem. Contra um fundo insignificante de realidade, a imaginação borda novos motivos: uma mistura de recordações, acontecimentos vividos, invenções, absurdos e improvisações”.
Trata-se de uma peça em que não há “uma história”, há histórias e fragmentos que se cruzam, múltiplas personagens a co-existirem em diferentes espaços e tempos. Três anos antes, a propósito de uma outra peça sua – “Rumo a Damasco”, que o próprio considerou como o seu primeiro “jogo de sonho” – Strindberg assumia acreditar que estava a trabalhar num novo género teatral e manifestava algum receio de que o público se sentisse “desorientado” ao início. As reacções à peça, na altura e até hoje, não afastaram completamente essa preocupação do autor.
Interessa-nos neste texto a profundidade do olhar sobre a condição humana. Sem ignorarmos nem o contexto em que a peça foi escrita nem a pungência com que a actualidade nos agride todos os dias, encontramos nas personagens que por aqui vagueiam temas intemporais, intrinsecamente humanos (e sociais): o amor, o individualismo, a mesquinhez, o endividamento, a solidão, a pobreza, as desigualdades, a liberdade, a doença, a guerra, o sofrimento, a vida, a morte. Como se uma câmara nos filmasse e nos devolvesse, em espelho, o conjunto de misérias de que também somos feitos – Os seres humanos metem dó, repete A Filha.
Esse é o exercício teatral, que nunca deixa de ser político, mas no qual não cabe a pretensão de indicar qualquer caminho ou solução redentora.
Num inquérito feito em 1899 (traduzido e publicado pelo Teatro Nacional São João em 2023, no manual de leitura do espectáculo “Um Sonho”, com encenação de Bruno Bravo), perguntaram a August Strindberg: “Que reforma social mais gostaria de ver implementada?”. A resposta: “O desarmamento”.
Évora, Outubro de 2025
A Escola da Noite












