Na origem desta peça esteve uma encomenda. Escrevi-a para a companhia Gare au Théâtre (sediada em Vitry sur Seine, perto de Paris), que pretendia prestar homenagem a Eugène Ionesco por ocasião do centenário do seu nascimento, em 2009. Mas o coração explosivo desta peça alimenta-se de uma história real, que me foi contada por um grande intelectual romeno, Nicolae Balota, um preso político nos anos 50 que viveu, numa cela partilhada com outros intelectuais condenados pelas suas ideias democráticas, um encontro incrível com a peça de Ionesco “A cantora careca”. Esta história verdadeira agradou-me e perturbou-me muito. Resume-se em duas palavras: uma noite, quatro presos políticos divertem-se à grande quando um deles conta de memória a peça de Ionesco, obra-prima do teatro do absurdo.
Com efeito, é por comodidade que dizemos que uma certa categoria de obras literárias é “absurda”. Na realidade, a história e a sociedade é que são por vezes absurdas, monstruosas, grotescas, irracionais. A literatura não é mais do que o espelho do homem e dos seus sofrimentos, das suas dúvidas e dos seus combates. Eu tive essa “revelação” ainda na época em que vivia na Roménia, sob um regime imposto por Estaline após a segunda guerra mundial. Conheci a censura, o culto da personalidade levado ao extremo pelo casal presidencial (Elena e Nicolae Ceausescu), o medo e a intimidação. Mas ao mesmo tempo eu faço parte de uma geração que encontrou na resistência cultural a resposta para a lavagem ao cérebro, o seu orgulho e a sua dignidade. A personagem principal da minha peça, o Poeta, é inspirada naquilo que eu vivi, vi ou ouvi. É o homem que, perante a estupidez, a ideologia única, a força bruta, nunca cede, que permanece livre no seu coração e na sua alma, mesmo a partir do momento em que é fisicamente atingido.
A cultura foi sempre um espaço de liberdade e de reflexão, de resistência contra a arregimentação do homem e contra a manipulação (pelas “grandes ideias” mas também pela sociedade de consumo, pela publicidade, e pela indústria de entretenimento ou pela imagem, tão poderosa nos nossos dias). A minha peça é, neste novo contexto, um exercício de memória. Mas creio que ela permanece actual, porque outros totalitarismos nos ameaçam hoje em dia. Na época do comunismo de estado, na União Soviética e nos países da Europa de Leste, pretendia-se “construir” o homem novo, dócil e submisso ao poder político. Hoje, a sociedade de hiperconsumo que estamos em vias de aceitar transforma o cidadão num consumidor dócil, submisso ao poder comercial e mediático.
Eis pelo menos uma razão pela qual eu creio que é preciso ver nesta peça um espelho que se dirige também ao nosso tempo, que se coloca diante de nós para nos obrigar a reflectir, a não esquecermos uma certa página da história da Europa, e a prestar homenagem à força da palavra… Tenho de agradecer a toda essa maravilhosa equipa de atores e ao seu encenador que, aqui, em Coimbra, tiveram a audácia de optar por este texto que eu escrevi em Paris sobre as ruínas das minhas angústias romenas… Vejo nesta circulação de ideias e de textos literários através da Europa uma esperança. Portugal e a Roménia estão situados nas extremidades do espaço da latinidade. Estou feliz por a minha peça poder ser também uma modesta “ponte cultural” entre dois povos que partilham uma herança espiritual comum.
Matéi Visniec
Dezembro de 2014
[texto escrito para o programa do espectáculo]
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