O que mais me tocou e profundamente foi o jogo de união de opostos: o tradicional e o moderno; o “velho” e o “novo”; o sagrado e o profano… com ousadia e arte o trabalho articula-se portanto a partir do texto “antigo” de Gil Vicente e o olhar “novo” dos encenadores. Um diabo de feira – artesanato português das Caldas, que se levanta a roupa e aparece o caralho vermelho, é o mestre de cerimónias num espaço dentro do grande barco – o palco cénico.
José Caldas, A guisa de crítica, 1/3/2022
Escadas que emergem dos subterraneos ardentes da terra, o inferno católico e ao mesmo tempo burlesco, trazem a tona personagens e ao mesmo tempo engolem as suas riquezas. O burlesco, o grotesco, o guignol/Robertos disputam com o sagrado a vitória e a cena. Lá no alto, no céu circense o anjo do senhor melífluo e elegante contrasta com o grotesco diabo popular.
A crítica, devo dizer, o maldizer Vicentino sobre justiça é exacerbado pela apresentação ao micronofe dos passageiros pelo servo do demónio e pelo jogo em traços grossos dos atores. É um prazer ter o corpo deles tão presentes – a voz corporizada : fuga às solenes representações do auto.
O desejo dos encenadores de tornar este auto de escrita erudita em arte popular portuguesa passa pela referência aos Bonecos de Santo Aleixo, aos Robertos, às máscaras de rituais tradicionais e a culminar na extrema ironia final – os cruzados representados por bonecos MANIPULADOS (pela igreja, pelo poder) a caminho da barca do céu.
Enfim, uma recriação poderosa de um texto tão antigo e tão atual sobre nós e sobre onde vivemos. Bravo!