O Márcio Meirelles, o encenador baiano e director do Teatro Vila Velha, velho amigo e culpado por termos conhecido o trabalho de Matéi Visniec, escreveu este texto-poema a propósito do nosso espectáculo.
Em vésperas de estreia, é mais uma prenda que vos oferecemos.
Da sensação de sermos humanos
soube pelo próprio matéi – feliz pelo fato de que uma de suas peças estava sendo montada em portugal –
que barros estava encenando DA SENSAÇÃO para a escola da noite
também fiquei feliz
pela confirmação da existência de uma internacional do teatro
de que matéi sempre nos fala
esta mais que confraria irmandade ordem esta posição diante do mundo
que muitos de nós temos e por isso nos encontramos um dia
e não nos separamos mais
sempre sabemos uns dos outros sempre temos notícias
sempre vibramos nos preocupamos nos comunicamos às vezes
mas temos a certeza de que outros estão na mesma luta
diária e planetária pela necessidade de ainda o teatro ser necessário
de ainda ser preciso que nos reunamos em salas ou espaços abertos
para ver e ouvir um coletivo de gente como nós a falar de nós
de nossas fraquezas de nossas potências
para testemunhar a transformação do ser humano em outras coisas
boas e más e nem boas nem más mas outras coisas
outras personas
para nos sentirmos capazes de dar conta de uma tarefa poderosa
refletir sobre o mundo e ser cruel nesta reflexão
não deixar pedra sobre pedra da desordem em que vivemos
até explodirmos no caos criativo
na possibilidade de também nos transformarmos e ao mundo
creio que das artes essa capacidade só o teatro tem
a presença de uma assembleia convocada para o debate
que nos alimenta e nos afasta e aproxima da humanidade
afasta do que só a humanidade tem de terrível como o extermínio
de outro ser da mesma espécie ou de outra por nada
nos aproxima da capacidade praticamente infinita de sobreviver
e ainda poder amar outro ser da mesma ou de outra espécie
e nos alimenta – esta é a parte mais cruel – da esperança
de que um dia possamos viver em paz e justiça e alegria e harmonia e saúde
matéi visniec é romeno mas poderia ser baiano ou conimbricense
humano com a capacidade de demolir amar e restaurar o mundo
através do teatro
saiu da romênia em 1987 para respirar a liberdade ocidental em paris
escapar da ditadura que oprimia sua vida em seu país
e encontrou na democracia outra opressão
outro cerceamento da liberdade e da memória valores maiores da humanidade
no império do consumo da intolerância da competição da disputa do capitalismo
o mesmo vírus que aparece com sintomas vários
em épocas e territórios diferentes
vírus q infecta a raça humana desde sempre
e matéi torna tudo isso tão visível e tão poético que é possível encarar a esfinge
e decifrá-la
matéi nos mostra o nosso tempo tempo terrível
como se outro tempo já tivesse existido para nós
mais ainda
como se outro tempo fosse possível para nós
e lança mão da tradição do teatro
das diversas convenções narrativas reconstruídas numa nova dramaturgia
quero dizer não apenas escrita literária mas estrutura capaz de sustentar
um discurso cênico onde tempo e espaço são matéria e corpo e ar
onde público e cena são indivisíveis
onde é possível
matéi constrói uma possibilidade de representar o mundo contemporâneo
um mundo que questiona a representação
onde cada um tem o poder de se representar
e não se sente mais representado por ninguém nem por nada
mas se identifica com alguma coisa ainda
então ainda é possível e necessário teatro
teatro nos alimenta da melhor parte de sermos humanos e da mais terrível
a esperança
márcio meirelles
salvador/bahia – 11/12/2014
Tags: Da sensação de elasticidade quando se marcha sobre cadáveres, Márcio Meirelles, Matéi Visniec