Mitzi, a empregada do bar da União dos Escritores que o Partido achou que não estava à altura da Escola de Literatura, acabou por publicar um livro, com as histórias para crianças que a avó lhe contava. “Nunca tive jeito para inventar nada, mas tenho boa memória”, confidencia a Sérgio Penegaru quando o visita na prisão. Na cena 18, depois de oferecer o livro ao Poeta, partilha connosco uma dessas histórias.
A poucos dias da estreia do espectáculo, convidámos Ana Biscaia para ilustrar o conto. Eis o resultado, que em conjunto vos oferecemos:
Era uma vez, num país que não tinha nome, um rei de de baixa estatura, que também não tinha nome. E o rei, como era baixinho, não suportava que os seus súbditos fossem maiores do que ele. Então, quando o rei passeava pelas ruas, as pessoas tinham de andar nas valetas, pois assim o rei parecia maior.
Mas o problema é que o rei estava a diminuir. Todos os dias diminuía um milímetro. Não era muito, mas era aborrecido. E o povo da cidade era obrigado a cavar valetas ainda mais profundas ao longo das ruas para poder andar sem se fazer decapitar.
Até que o rei se tornou muito, muito pequeno e as valetas muito, muito fundas. Quando o rei passeava pela cidade, ele praticamente não via os seus súbditos, já completamente engolidos pela profundidade dos canais. Assim, ele era feliz. Como já não podia comparar o seu tamanho com o dos seus súbditos, já não percebia até que ponto tinha ficado minúsculo. Assim diminuto, um dia uma gota de chuva caiu por acaso exatamente sobre a cabeça do rei e esmagou-a. O rei deixou de existir, mas os habitantes da cidade continuaram a viver em valetas profundas. Porquê, não saberia dizer-te, minha criança.
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