Isso queriam eles! Os agiotas e os bastardinhos até podem ser personagens no teatro, mas nunca serão património da humanidade como Édipo, Hamlet, D. Quixote, Woyzeck ou as almas d’ A gaivota.
Isto vai escuro. Alguém terá, uma vez mais, de iluminar e restaurar as paisagens – a humana e as outras, que outros andam a desgraçar – e refazer a caminhada. E para isso também cá estamos nós, os das artes do espectáculo, os teatreiros, apesar de tudo convencidos de que numa ou noutra hora mais expedita seremos capazes de esclarecer os imbróglios e dar alento à possibilidade de um qualquer milagre – que sabemos poder acontecer no teatro – que dê ânimo à ideia de uma comunidade mais disponível para os diálogos em volta das éticas e das belezas que há por aí, mas que alguns teimam em querer obscurecer.
Os agiotas têm poder. Gostam de esconder-se nas suas cavernas de troglodita vendo por controle remoto a evolução das suas usuras e até que as suas cabeças rolem, terão poder. Eles e os bastardinhos. É lindo de se ver: os agiotas atiram as bolinhas e os bastardinhos correm a buscá-las.
Os bastardinhos são uma espécie de quadrúmanos que praticam a sabujice nuns degraus abaixo do patamar onde os agiotas acumulam os seus metais brilhantes. São os organizadores da desdita mais recente que nos coube em sorte e sempre cumprindo zelosamente as ordens dos crápulas do luxo. Agiotas e bastardinhos convivem neste mundo como nós, e do teatro querem saber muito pouco, ou melhor, querem lá saber do teatro! Ou melhor ainda: o teatro que s’ afunde! O teatro e o resto. Que falta fazem os outros, os artistas e a cultura? Houve tempo em que se pensava, e defendia, que as acções humanas concorriam para a cultura, mesmo em plena guerra. Era simultaneamente um meio e um fim. Hoje, na teia de neurónios ressequidos dos agiotas ainda existirá uma ideia de cultura, mas dominada por um aparato arbóreo: a árvore das patacas. Os camaradas usurários, também quadrúmanos, têm evoluído atrás do cheiro do dinheiro, é com ele que estrumam a vida e certamente esperam que um dia, na falta das couves e batatas, possam trincar e mastigar notas e moedinhas. Bom alimento será.
Socorro-me, ainda e sempre, de um fragmento de Heraclito, o antigo filósofo pré-socrático: “o burro prefere a palha ao ouro”.
Dantes, as crises eram crises, pronto, e mostravam-se no teatro como lugar de eterno retorno. As obras teatrais anunciavam a consumação de honras e vergonhas, esclarecendo e aliviando a humanidade sedenta de deuses e heróis. A novidade da crise actual é que se trata de terrorismo financeiro. Tem um perfume acentuado a extermínio, procurando disciplinar e domesticar a vida das pessoas e, se possível, exterminar os indesejáveis. Ora, nós, no teatro, até gostamos de afirmar a austeridade, mas auto-imposta, igualzinha à autoridade, e que a poesia afirma como liberdade. Assim, podemos compreender porque gostam os agiotas-dos-neurónios-mirrados de ver o teatro como um retiro para entreter a banalidade ou uma ruína exótica para estimular algum turismo.
Como é que nós no teatro podemos lidar com essa gente que executa o terror financeiro? É simples: já que não temos, não teremos nem queremos o poder que eles têm é -com todas as letras- mandá-los à merda. Nenhuma palavrinha deselegante é mais incómoda do que a desgraça que fazem viver a tanta gente. É mandá-los à merda, sabendo que eles já nos mandaram a essa parte há muito tempo. Ficamos quites, mas nós com a graça iluminada das personagens que nos cumpre fazer viver nos teatros e eles pintalgados de esterco nas conferências executivas da finança. Como diria o Mestre Salas da família dos Bonecos de Santo Aleixo… uns filhos da púcara!
Para mal dos pecados de agiotas e de bastardinhos, o teatro irá continuar. Por muito que lhes custe, iremos manter aceso o lume teatral. Os gregos – sempre os gregos! – inventaram esta coisa duradoura de estarmos num lugar escolhido por todos, uns diante dos outros contando e recontando as narrativas da alma e por isso seguiremos adiante. Continuaremos a herança de Epidauro e certo é que outros, mais tarde, irão fazê-lo também. Os encontros no teatro têm mistério suficiente para essa fé que acrescenta humanidade ao humano, e que nem precisa de ser crença religiosa: basta-nos aceitar as imperfeições de que somos capazes e procurar que se ajustem a uma imperfeição maior e mais acima onde imaginamos que, pouco a pouco, se incendeiem e regressem à perfeição original. Aí estaremos no lugar-que-não-é-lugar, paradoxalmente, o lugar de todas as utopias: o teatro.
Acreditemos então que esta crise é apenas mais uma, das muitas que têm vindo a fazer a geografia humana, umas mais sombrias do que outras, todas fazendo parte da dificuldade que é compor a vida. Sabemos quem são os autores desta barbaridade contemporânea, embora queiram insinuar-se sem rosto, e isso já é muito. Poderemos sempre apontar-lhes o dedo e acusá-los de crimes contra a humanidade. No teatro serão, obviamente, condenados. Fora do teatro, não sabemos.
Escutem… não ouvem o eco festivo das antigas vozes de Epidauro?
V Festival das Companhias, Évora, Junho de 2012
Abel Neves
(intervenção de abertura no debate “O Teatro em tempo de crise”,
no V Festival das Companhias da Descentralização, 9/06/2012)
Tags: Abel Neves, CULTURBE, Évora, Festival das Companhias, Teatro Garcia de Resende
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