Físicos que não curam amores

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José Bernardes

Autor de cerca de meia centena de peças, escritas e representadas entre 1502 e 1536 (o que faz dele o dramaturgo mais prolífico do seu tempo, em toda a Europa), Gil Vicente é, ainda hoje, um dos maiores nomes do teatro português de sempre.
Embora a sua arte revele uma importante dimensão literária (parte das suas raízes mergulha nos cancioneiros peninsulares dos séculos XV e XVI), só no palco é possível captar a excecional vivacidade multissensorial que a caracteriza, feita de palavras mas também de música e de gestos.

De facto, é através da voz e do corpo dos atores que Gil Vicente se faz mais presente aos nossos olhos, permitindo a aproximação ao ritmo e às coordenadas mentais do século XVI.

É isso que sucede na Barca do Inferno (peça que continua com presença certa nos programas de Português) e é isso que ocorre também com Físicos, auto bem menos conhecido do que o anterior, onde convivem sátira e entretenimento cómico. A ação centra-se nas maleitas de um clérigo que, ao contrário do que o seu estado levaria a supor, se apaixona fortemente por uma moça que não lhe corresponde. Mas não é apenas o clérigo que é objeto de sátira. Também os médicos que o visitam são ridicularizados na sua ineficácia e na sua presunção (um dos alvos preferidos da crítica vicentina). Após o desfile de fracassos que envolve os quatro médicos, a doença viria a ser finalmente identificada não por um físico mas por um outro clérigo, ele próprio familiarizado com a “coita de amor”.

Tudo termina com uma “ensalada”, procedimento musical a que Gil Vicente recorre muitas vezes, nas farsas, para rasurar o desconcerto e repor a alegria.

Beneficiando de mais de vinte anos de familiaridade com os textos de Gil Vicente, António Augusto Barros e a “sua” Escola da Noite trazem-nos, desta vez, um trabalho que em nada desmerece dos anteriores (nem em segurança nem em talento nem em inventividade), contribuindo para que alunos, professores e espetadores em geral possam conhecer melhor uma obra que, embora sendo vasta e diversificada, foi construída com um todo, reclamando, por isso, um conhecimento articulado e coerente.

José Augusto Cardoso Bernardes
Director da Biblioteca-Geral da Universidade de Coimbra
Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

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