A avenida dos vestidos cinzentos

Madalena Victorino (*)

 

 

 

Esta exposição em forma de carta representa uma oportunidade única no meu percurso coreográfico.

Quando a Direcção-Geral das Artes me endereçou o convite para criar uma exposição sobre a Dança, que deveria percorrer o País e apresentar-se em múltiplos locais e instituições, para um público vasto e transversal, senti-me de imediato muito honrada e, logo depois, hesitei. Hesitei, pela grande responsabilidade em mim depositada. Hesitei, porque não era claro para mim como seleccionar momentos-chave consensuais do grande atlas que compõe a fascinante história do homem na sua necessidade de dançar. Não sou uma historiadora, sou uma coreógrafa.

Pensei melhor e decidi aceitar.

Ao criar o corpo da exposição, optei por prepará-la como um trabalho coreográfico e fotográfico. Sendo a coreografia o melhor modo que conheço de trabalhar – é o meu trabalho – decidi que me queria desafiar no propósito de desenhar um objecto que surgisse da folha de cada painel para o espaço do acontecimento, e também para as mãos e para as pernas do público visitante. Que através da exposição saltasse aos olhos do visitante a força da imagem do corpo fotografado, pintado ou desenhado e que isso o magnetizasse. Partindo do meu percurso, ligado a uma visão expressionista da Dança, assente no fascínio pela observação do comportamento, pelo movimento do quotidiano, pela verdade incontornável que do corpo transpira, só podia escolher um caminho: o de convidar as pessoas a ver o corpo nas infindáveis incógnitas que surgem e se escapam dele quando aparece.

Pensei a exposição como um grande desenho de movimentos. Movimentos que se guardam em vestidos cinzentos que, como molduras ou painéis, formam uma colecção.

Vestidos gigantes que, como os de Loie Fuller, uma das precursoras da Nova Dança americana do início do século XX, seriam iluminados por lâmpadas que emolduram os corpos, ora escondendo-os, ora revelando-os, num mar de tecidos luminosos, translúcidos e esvoaçantes.

Vestidos cinzentos que, como as sombras que Jung evocava e que chegavam do não consciente, trazem da obscuridade a força ambivalente e espontânea que existe latente no nosso corpo.

Os vestidos cinzentos e gigantes desta exposição apresentam uma ideia ou classificação. Uma ideia sobre o corpo que os veste, que os ordena e vai enquadrando, num percurso de tradução (que faz destilar da imagem um universo de ideias) e também de correspondência coreográfica (procurando em cada corpo o seu lugar numa dança).

Gostava que o todo da exposição entrançasse sensações, emoções e pensamentos que, postos em jogo com o corpo do público, chegassem a um resultado entusiasmante. Que se conquistasse uma compreensão individual e própria da Dança quando ela parte do seu chão: o corpo não trabalhado artisticamente.

Rudolf von Laban (1879-1958), fonte que inspira e alimenta esta carta, defendeu um conjunto de teses que valorizavam o movimento humano como Arte. Laban, fascinado pela análise do movimento como um grande sistema lógico e expressivo, via na associação directa entre movimento e estado da mente, no valor social de um gesto, nas relações entre movimento, personalidade e carácter uma base de trabalho singular. Laban queria que as pessoas tivessem a experiência do mundo que o movimento abarca. Distribuía utensílios e ferramentas para que a experiência fosse rica e esclarecedora: como se o corpo e o seu movimento formassem uma arquitectura dinâmica e coerente, cheia de facetas, prismas e potencialidades. Desse modo, a natureza e condição humanas poderiam ser lidas e filtradas pela dimensão artística. É a partir deste momento que o terreno do humano invade também o campus da coreografia e da Arte da Dança.

Quando comecei a estudar dança, nos anos 70, em Inglaterra, as minhas primeiras aulas de análise de movimento, que antecediam os cursos de composição coreográfica, começavam sempre com grandes passeios. Passeios com tarefas de observação por um bairro de subúrbio do Sudeste londrino, onde uma população maioritariamente de origem africana se movimentava, ora incansável e apressada, ora lenta e preocupada, ora lúdica e jovial. Experimentávamos um método de observação e análise detalhado de posturas, gestos, locomoções, expressões, condições corporais, sociais, idades, estados emotivos, com o intuito de conhecer o corpo e a sua verdade, compreender os seus motivos, ou o que o fazia mover-se. Na rua nada existia por acaso, tudo tinha uma causa e um efeito. Deveria ser assim também no palco. Trazia-se todo esse material para dentro do estúdio, transcrito num sistema de rotação de movimento inventado por Laban e memorizado fotograficamente com os olhos.

Os professores, coreógrafos muitos deles, decompunham esses materiais em elementos ou factores que nos ajudavam a compreender e a sistematizar o grande mapa orgânico do movimento: a relação do corpo com o espaço, com o seu peso, com o tempo, com a forma de sequenciar movimentos. Os modos individuais de dar um passo, por exemplo, levavam-nos à descoberta e conquista rápida de um património potenciador de danças sem fim.

O que me surpeendeu nesse momento da minha aprendizagem foi descobrir que um simples passo transportava uma história complexa, uma condição da qual não se pode fugir, que a casualidade no corpo não existe, que há razões de origem genética que evoluem e se transformam com a vivência e com a travessia pela vida. Tropeçar, sentar-se, sair, encostar-se – acções simples capturadas numa estação de metropolitano, por exemplo, poderiam ser tecidas num intrincado jogo coreográfico de movimentos abstractos, impregnados de sentidos implícitos.

No dia da minha primeira comunhão apareceu-me, como uma revelação visual, a fila de meninas de branco em que em integrei. Senti essa fila mover-se lentamente e em uníssono pela nave central da igreja, até as meninas se separarem alternadamente, fazendo um leque branco de movimento, uma para a direita, outra para a esquerda, depois de receber a comunhão. Não consigo decidir ainda hoje o que teve maior impacto para mim: se foi observar e participar, sem saber, pela primeira vez num coro ritualizado de movimento, se foi a experiência obscura de pressentir um fragmento do transcendente descendo pelo interior do meu corpo, ou se foram porventura as duas em simultâneo.

Penso que esta foi a minha primeira experiência de Dança. Compreendi isto quando comecei a estudar a obra de Laban. Tal como compreendi que, com o meu pai, nas corridas que fazíamos a nadar para chegar ao barco de pesca mais próximo, éramos um par de nadadores, bailarinos no mar.

Lembro-me do tamanho e fluidez dos braços dele a cortar a água, comparados com os meus. Braços grandes e fortes, braços pequenos e leves. O que me seduziu na altura foi descobrir que, apesar das enormes diferenças que existiam entre nós, conseguíamos ambos nadar lado a lado.

A acção, o espaço e o tempo em que os acontecimentos se sucediam estavam ligados por uma unidade de desenho. Um desenho que se constituía como um espaço amplo de leitura e vivência.

Rudolf von Laban desenhava imenso. Analisava a orientação e a dinâmica com que os corpos habitam o espaço para estudar a significação do movimento quer no quotidiano, que no estúdio de dança. Partia de princípios da geometria e da cristalografia, e fazia aparecer, no seu traçar, volumes imaginários que envolviam o espaço e o corpo. Laban acreditava numa harmonia que se desencadeava entre a energia do corpo e o seu desenho no espaço. Riscava unidades ou “pedaços” de espaço com pontos, linhas, ângulos e planos que, ao completar-se, faziam nascer referências estratégicas por onde o corpo passava, se pensava e emocionava. Era a Dança que vibrava com a expressão do espaço. Descobria-se a psicologia de uma direcção ou de um ponto no espaço: ir em frente é muito diferente de recuar, assim como um ponto alto numa diagonal e à frente do corpo não tem a mesma “cor” de um ponto que se localiza em baixo e atrás do corpo. Um ponto no espaço. A Avenida da República, aos 7 anos, sozinha. Atravessá-la foi um marco importante no meu acordar coreográfico. O meu pai de um lado da Avenida, eu do outro. Sinal vermelho para peões. Automóveis, autocarros, motorizadas, eléctricos, tudo a velocidades diferentes a passar. Eu a olhar atenta e quieta para ambos os lados. Nesse tempo de espera, antecipava o meu caminhar para quando todo o trânsito parasse.

Luz verde para peões. Como se se tivesse soltado uma energia dentro de mim, abria caminho pela passadeira com a sensação de expansão e voo até ao encontro do meu pai, que me felicitava pela conquista do espaço da Avenida. Movimento e quietude: aprendi mais tarde que são iguais e a mesma coisa, sendo que o primeiro tem o movimento à vista dos olhos e a quietude tem-no escondido nas fibras do corpo.

No trânsito coreográfico que passa na avenida desta carta, gostava muito que o visitante se encontrasse e fosse recibo por si próprio. A sala onde a carta se apresenta será o ponto de convergência entre a dança e o seu corpo. Convida-o a poder parar e deixar-se preencher por dentro com a luz do movimento. Então, o visitante de qualquer idade e qualquer país poderá observar-se a compor naturalmente a coreografia dos seus passos…

 

 

(*) Texto publicado no programa da exposição “uma carta coreográfica”, iniciativa da DGArtes em exibição no TCSB até 16 de Maio. Não perca!

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