Carlos Figueiredo: Modelador de sonhos

A Escola da Noite republica o belo texto que Marta Poiares escreveu para a Rua Larga (revista da Reitoria da Universidade de Coimbra) em Abril de 2010. O almoço de homenagem ao Sr. Carlos é no dia 22. O prazo de inscrições foi alargado até à próxima segunda-feira.

 

 

“Isto é parte do que sou, do que continuo a ser”. Carlos Figueiredo, um dos mais reconhecidos nomes ligados ao Teatro Universitário conimbricense, não gosta de falar. Prefere mostrar. Parco em palavras, passeia-nos pela memória dos seus 72 anos inscritos em imagens: cartas, documentos ou bilhetes de teatro. Guarda tudo longe do pó do tempo que passa. O passado corre-lhe na voz não embargada pela nostalgia, por nunca ter deixado de fazer aquilo que sempre fez: moldar a madeira, como quem molda a vida.

Não começou logo como carpinteiro, mas na verdade, sempre o foi. Nasceu em Portugal, mas viveu em Angola desde os três anos. O futuro trocou-lhe os passos e acabou por voltar a Portugal, pouco tempo depois: “Estivemos lá apenas seis anos, porque o meu pai, também carpinteiro, morreu muito novo. Éramos quatro filhos e tínhamos de ajudar a minha mãe”. Aos 11 anos, já de volta ao país, terminou a 4ª classe e começou a trabalhar, de imediato. O seu desejo era ser serralheiro, mas era demasiado novo. “Ninguém me aceitava, porque era só um miúdo”, explica. No entanto, a necessidade ditava o destino, pelo que acabou por começar a trabalhar numa oficina de construção, na Rua da Nogueira, em Coimbra. Apesar de o pai e o avô terem tido o mesmo ofício, garante não ter sido com eles que aprendeu o que sabe hoje. Foi ali, na oficina do sócio do pai, Júlio Ferraz – mais tarde, seu padrinho -, que aprendeu toda a arte e o engenho que constroem a carpintaria: “O meu primeiro trabalho foi a endireitar pregos, na altura em que estes se aproveitavam de obra para obra. Ganhava 25 tostões por cada um que endireitava. Hoje em dia, já não é assim, não prestam para nada”.

Ainda como aprendiz, trabalhou no Teatro Paulo Quintela, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (UC). Desde então que os caminhos da arte cénica e de Carlos Figueiredo se cruzaram e confundiram, nunca mais existindo um, sem existir o outro. Grande parte da sua actividade profissional foi sempre dedicada às actividades cénicas, com destaque para o Teatro dos Estudantes da UC (TEUC), por cedência da Reitoria, depois no Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV) e, mais recentemente, n’ A Escola da Noite — Grupo de Teatro de Coimbra.

Em 1963, no dia 18 de Dezembro, começou a trabalhar para a UC, mas como serventuário de segunda classe nas instalações académicas: “Vencia mais como serventuário e, na altura, não havia lugar de carpinteiro disponível”. Em 1965, acumulou também funções de projeccionista no TAGV, assim que o espaço começou com a exibição regular de filmes, na altura no formato de 70mm: “Gostava muito de o fazer, mas era o cabo dos trabalhos. Tínhamos de ensaiar antes, travar e acrescentar ou tirar fita, as legendas eram projectadas a carvão… Fazia porque tinha de fazer. Só assim é que os filmes vinham a Coimbra”, recorda.

Por volta de 1968, no Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC), ainda nas velhas instalações situadas nas caves da velha Universidade, o Sr. Carlos – como é conhecido -, “dava uma mão, sempre que precisavam”. Foi ele que desmanchou a bancada e que construiu os camarins sob a mesma. Ainda hoje perduram.

As primeiras peças que viram o cenário ser por si erguido foram, nas palavras certas do próprio, Tartufo, de Molière, com Francisco Delgado como protagonista, e O Professor Taranne, onde entrava António Barreto. Desde então trabalhou, entre outros, com a Bonifrates, a Oficina do Teatro, o Teatro da Rainha, o Teatro Viriato, o Teatrão, a Escola Universitária de Artes de Coimbra ou a Escola Superior de Educação. Com alguns deles correu mundos e fundos: regressou a Angola, foi à Guiné, Moçambique, Madeira, Açores, Espanha, França, Itália, Brasil… “Viajei mundo fora com eles e recebiam-nos bem em todo o lado”, recorda. Homem de poucas palavras, mas de palavra, lembra-se de duas situações que explicam o reconhecimento intocável de todas as companhias por onde passaram as suas mãos: “Da última vez que fui a Angola, deixaram-me cá ficar. Carregámos as coisas, no TAGV, e enquanto fui à oficina, arrancaram. Peguei num táxi e apanhei-os já em Lisboa, na portagem. O Rogério Soares exclamou logo: ‘Eu logo vi que o Sr. Carlos não nos deixava enrascados!”, conta de riso a atropelar as palavras. Já em 1996, quando esteve em Lisboa com a peça Leôncio e Lena, convidaram-no a ficar a trabalhar no Centro Cultural de Belém, mas Carlos Figueiredo não virou costas a quem o acolheu: “Não aceitei, quis ficar aqui sempre”.

Em 1995 reformou-se, mas continuou a trabalhar. Quiseram os dias vindouros pregar-lhe mais uma partida: dia 5 de Dezembro de 1999 (cada sílaba desta data é sublinhada de forma carregada) sofreu um acidente no palco do TAGV. Caiu de uma altura de seis metros e esteve 12 dias em coma profundo. Se foi uma altura difícil? “Não, foi como outra qualquer”, responde de firmeza na voz. Regressou ao trabalho em menos de nada, mas acabou por sair do TAGV: “O Dr. Abílio [Hernandez], na altura director do teatro, ficou chateado porque não queria que eu me fosse embora. Mas não me sentia em condições, porque não estava a fazer o meu trabalho”. Apesar disso, nunca pensou em desistir: “Desistir? Não. Não estava em idade de aprender novamente um ofício e não fiquei com medo nenhum”.

José Neves, um dos fundadores do projecto A Escola da Noite, onde co-encenou Amado Monstro de Javier Tomeo, espectáculo inaugural da companhia, garante que com Carlos Figueiredo se perdia o medo de todas as alturas: “Ganhámos o prazer da altura! Carregávamos pianos e subíamos varas de projectores à voz do Sr. Carlos. Erguíamos outros mundos no palco. Apagávamos as luzes e fechávamos o teatro.

E, se a janela da pensão em que estávamos alojados não estivesse em condições, ele ainda arranjava maneira de a consertar, antes de dormir”, conta.

O Amado Monstro tinha a cenografia a cargo de João Mendes Ribeiro, com quem Carlos Figueiredo trabalhou muitas vezes. “Ele desenhava, fazia a maqueta e eu executava a obra”. Tão simples quanto isto. João Mendes Ribeiro conta que estes dispositivos cénicos foram sempre um acto de afecto entre os dois: “De gesto criativo de uma imensa generosidade, o Sr. Carlos tornou-se co-criador, profundamente implicado na arte final do objecto cénico. A sua participação no processo criativo como sujeito, a relação entre mestre carpinteiro e o arquitecto, adquire a dimensão de uma cumplicidade detectável em muitos dispositivos cénicos construídos para A Escola da Noite”.

Por vezes, a projecção abstracta de um cenário era difícil de ser concretizada em matéria, mas nunca impossível. Pelo menos, para o artífice: “Nenhuma montagem é impossível para ele, o que deixa a equipa bastante inquieta. Quantas vezes quis ouvir da boca dele que não era possível… Mas não, nunca ouvi”, confidencia José Neves. O próprio visado desmistifica essa proeza: “Às vezes, era mesmo complicado. O cenário do Amado Monstro foi complicado, por exemplo. Passei noites inteiras sem ir à cama”, admite.

António Barros, que o conheceu na moldura da vida académica coimbrã, lembra-se bem das lutas que Carlos Figueiredo, por vezes, tinha de travar: “Eram, na encomenda, quereres tantas vezes na fronteira do absurdo, mas, para ele, não havia medos nem negação. Era um lutador constante contra o tempo escasso e a utopia do desenho”. E evoca: “Homem sem sono, recordo-o a trabalhar pela madrugada fora na magreza da noite – com a esposa, e companheira, a contrariar-lhe a solidão confortando-o com a sua presença -, enquanto ele carpinteirava, fazendo escoar do seu talento serenas construções, forma do que, em nós, tinha começado por ser apenas o imaginário de um sonho”.

Em meados da década de 1980, conheceu Jorge Ribeiro – “homem das luzes”, como lhe chama –, quando este ingressou no TEUC e, desde então, já passaram 25 anos de colaboração regular. Para o desenhador de luz, no Sr. Carlos destacam-se “a sensibilidade, o humanismo e o seu Saber. É usando madeira como matéria-prima que melhor consegue exprimir todo o seu imenso talento e experiência”.   Carlos Figueiredo conta estórias como constrói cenários: com as mãos, telúricas, de quem mete dedos à obra. Para além do trabalho como carpinteiro, cava terra, ata videiras, semeia batatas e favas, planta oliveiras. “Há sempre terra para cavar”, ri-se, com uma simplicidade que desarma. Casado há 50 anos – isso sim, “é obra”, diz ele em jeito de brincadeira –, tem três filhos e nenhum seguiu o ofício de carpinteiro. “Eles têm serviços mais limpos e mais seguros do que eu. Estão melhor assim”, garante. Tornando um privilégio observar a transformação de nadas em tudos, com apenas as mãos e uma persistência incrível de quem não se rende ao impossível, o Sr. Carlos é apelidado de “modelador de sonhos” por António Barros: “Um mágico. Alguém que, numa função terapêutica, ocorria de forma sábia a solucionar todos os embaraços e avarias, recorrendo ao seu fascinante arquipélago de gavetas que contornavam a oficina. Incansável e rigoroso no seu ofício, fazia nascer do seu silêncio frutuoso, objectos únicos a darem forma nobre às ideias ganhas. Desdobrava-se em convulsivos empenhos, sempre em salvação dos programas que, com a sua mão gigante, logo resultavam vitoriosos”. João Mendes Ribeiro sublinha esse privilégio que é estar perto daquele a quem chama de mestre: “Todos ganhamos muito com a qualidade do seu trabalho e, sobretudo, com a sua enorme qualidade humana”.

“Modelador de sonhos”, “Mestre”, “exemplo de brio”… Para si próprio, é apenas “Carlos Manuel de Figueiredo e chega”. Se algum dia vai deixar de modelar o mundo do teatro? “Não sei. Trabalharei até poder”, conclui.

Marta Poiares

Rua Larga, 28 – Abril/2010

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