Tenho sempre próximo de mim um pequeno conjunto de livros que gosto de reler amiúde, de saborear pedacinhos. A mancha de texto não muda, as palavras permanecem as mesmas, contudo, essa imutabilidade é meramente aparente porque encontro sempre nelas novidade.
Domingo despertei numa cidade de céu plúmbeo e mergulhada numa chuva incessante. Olho de relance para a pequena pilha de livros e escolho as “463 Tisanas” da Ana Hatherly. Na tisana 415 leio: “o tempo é uma espécie de revelador fotográfico ao contrário: faz com que as imagens em vez de aparecerem, desapareçam”. É triste essa ideia de perdermos imagens. Aliás, é triste a ideia de perdermos coisas.
Olho com maior atenção para o tal montinho de livros, alinhados pela sua lombada e penso como seria triste perdê-los. Leio o nome dos seus autores e, egoisticamente, penso como a minha vida seria infinitamente mais pobre se não os tivesse lido, se nunca tivessem existido.
Já imaginaram acordar num sítio onde não há memórias, não há livros, não há música, não há imagens, não há representações? Já imaginaram acordar num país desprovido de cultura? Sinto um arrepio.
Mas esta é a realidade para onde nos querem arrastar. Esta será em breve a realidade de um país que destina 0,1% do seu orçamento para cultura.
Existem neste momento, pelo menos seis companhias regionais de teatro à beira de fechar as portas. São instituições com décadas de contributo público, que apesar das adversidades resistiram até ao limite para tornar o quotidiano de Coimbra, da Covilhã, de Braga, de Évora, de Faro ou da Serra de Montemuro muito mais rico. Os cortes na ordem dos 38 a 60% no seu financiamento público, que já era mínimo, para não dizer ridículo, os atrasos nos pagamentos, a incerteza total criada pelo silêncio do Governo quanto ao futuro, não lhes permite continuar a sobreviver (sim, porque é de sobrevivência, e não de vida tranquila, que se trata). Perder estas companhias é perder história e perder futuro, sobretudo em locais em que os constrangimentos regionais são por si só limitadores de uma multiplicidade de escolha.
Desinvestir na cultura, da miserabilidade para a nulidade total, é diminuir-nos a uma mera mecanicidade, através da limitação das nossas escolhas e dos nossos espaços de vivência e aprendizagem.
Em relação à cultura, este Governo é pior que um revelador fotográfico, é uma verdadeira ausência de filme para revelar.
Cláudia Oliveira
jurista, assessora no Parlamento Europeu
artigo publicado no jornal Região de Leiria
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