Rui Madeira: “Com Oresteia, queremos fixar-nos na contemporaneidade”

Rui Madeira, director artístico da Companhia de Teatro de Braga (foto: Augusto Baptista)

Rui Madeira dirige em Coimbra, na próxima semana, uma oficina sobre a “Oresteia”, de Ésquilo.

As inscrições estão abertas.

 

Oresteia, uma tragédia da Europa.
em busca de um teatro político

Sempre a Justiça se exerceu em nome de deuses, imperadores, reis, chefes, ditadores… figuras providenciais, míticas, fundadas no medo, no respeito, na admiração, no terror. O exercício da Justiça sempre se quis espectacular e exemplar. Moral. Acusação. Culpa. Culpado. Castigo. Moral. Pecado. Pecador. Crime. Castigo. Morte, Assassínio. Homicídio. Suicídio. Matricídio. Parricídio. Moral. Fome. Tortura. Raça. Holocausto. Extermínio. Pena de Morte. Enfim…a Europa. Nesta nossa Europa, o convívio com o arbítrio tornou-se familiar com a respectiva condena a cair sempre no vizinho. No desconcerto de deuses, pessoas e nações, sempre se comeu e bebeu a justiça, em cálices de ouro, a bel-prazer dos poderosos, para auto-satisfação dos seus.
Sempre a justiça invocou deuses e deus. Sempre a humanidade sofreu. E a humanidade é uma abstracção moral reconfortante. E não precisamos de rever a História, nem antiga nem clássica, nem da idade média, a Europa vive hoje como sempre almejou viver… na barbárie. O Caos instalou-se com novos mitos para gáudio e jactância destes novos deuses que nos condenam.
A tragédia tem um viver íntimo, como dizia Bonnard* “foi para mim que o poeta escreveu esta tragédia; quis tomar-me pela mão e ajudar-me a atravessar a dor de viver, que é a sua e é a minha, a nossa dor de homens e conduzir-me por fim às margens da alegria” Ainda citando, “é essencialmente uma guerra declarada ao fatal, de que o homem deve libertar-se”.

Com Oresteia, queremos fixar-nos na contemporaneidade. Em NÓS! Nesta nossa – por herança de bastardos – Europa. Essa mítica, bela e quente Europa que se banhava no Poleponeso, amamentada no berço pela Hélade para não deixarmos que a Memória nos atraiçoe. A velha vontade, há tanto acalentada, de destruição da nossa querida Europa recrudesce e os novos turcos, são afinal os nossos irmãos de ontem. Eles estão hoje no meio de nós e esperam o momento.

Com Oresteia, queremos fixar-nos na Europa a partir do sul. Com os pés nas areias mediterrânicas, num tecto de estrelas, com o azeite a alumiar e um ramo de oliveira na mão. Daqui, deste país com P. velho de quase mil anos, mas jovem, pequeno e infeliz, nesta Europa moribunda. Não podemos continuar a calar, sob pena de explodirmos de indignação, perante a torpeza e vacuidade assassina do discurso político, bien fait, com a mãe Grécia a pagar juros indexados a submarinos e a obrigatoriedade de voto sim, seja contra Palestina na ONU, seja com um nim às limpezas étnicas na ex Yugoslávia, seja a favor do ataque à Líbia, apesar do direito internacional, seja a meter a língua no bolso relativamente à Síria, seja contra as armas nucleares no Iraque, mas sempre, sempre a favor do negócio da morte, da indústria da guerra, do sugar do petróleo, sangue do sangue dos nosso irmãos do outro lado. Sempre a Justiça, sempre a Moral a confortar o ego. A Europa perdeu o rumo na volta da guerra. Os comandantes tresmalharam-se, embebedaram-se e ufanos de poder, declararam guerra aos povos. Esta Europa, casa dos Átridas, berço de nações e de culturas, de hábitos de convivência entre homens e deuses está cativa, qual Cassandra.

A Europa, a do Sul, vive estes dias esperados, anestesiada e amnésica. A falha de memória, o esquecimento cultural, paralisou o exercício de cidadania e o reconhecimento do Outro.
A Europa, esta Europa toda, arrogante e faminta, sobrinha de todos os aleijados mentais da segunda guerra, é a Europa de líderes / títeres, com armaduras de deuses num Olimpo de circo. Com máscaras de olhos vazios e dentes roubados nos campos de concentração, funis de petróleo nas bocas e coturnos feitos de ossos nas valas comuns. Continuam a arrasar altares, pois já nada os indigna. Já não há deuses que nos acudam, nem homens que os interpelem.
A nossa Europa é hoje uma massa informe, gelatinosa, que se apega ao que passa.

Com Oresteia, as máscaras desta tragédia europeia escondem rostos singulares, de “deuses castigadores que a democracia erigiu”, e que do alto do seu Olimpo olham com jactância os Coros de deserdados que vagueiam atordoados e começam a interrogar o capital, esse deus ex-máquina.

E assim, nesta trilogia trágica, entre deuses sem linhagem e humanos desumanizados, se ensaiará um novo paradigma de JUSTIÇA.
É um caminho de guerra, que se vai fazer com mortos, culpados, vítimas e algozes. E com testemunhos para memória futura.

Com Oresteia o que se conta é a história desta Europa, depois da segunda guerra, alquebrada e moribunda, cansada da vitória. Dividida como uma família desavinda onde impera o ódio, a inveja e a intriga. Esta Europa / Clitemnestra a um passo, puta e mãe, Agamémnon e Egisto, Orestes e Electra. Esta Europa com tantas Cassandras no ouvido.

Esta Europa, a mediterrânica, tem de libertar-se e acabar de vez com os velhos deuses que nos querem enlouquecer. Nem estamos condenados, qual Efigénia, nem somos tão volúveis, quanto Helena. A guerra, esta guerra é para ser ganha pelo Coro de cidadãos de Atenas.

Rui Madeira

*A. Bonnard, la tragédie et l’home.

 

 

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