Rui Valente escreve sobre Gil Vicente, a propósito de “Embarcação do Inferno”

Teatro Garcia de Resende, em Évora (foto: Pedro Rodrigues)

Teatro Garcia de Resende, em Évora (foto: Pedro Rodrigues)

Longilíneo, solene, Gil Vicente dobrou a esquina da pastelaria Violeta e entrou no Largo Joaquim António de Aguiar. Ao fundo, o Garcia de Rezende dominava o horizonte. Era o seu percurso habitual, nos últimos tempos, mas não conseguiu deixar de sorrir, impressionado — que progresso desde a ilustre casa de madeira que El-Rei mandou fazer.

Sem querer, o olhar fugiu-lhe para o velho São Domingos, ali ao lado. Já poucos reconhecem o antigo convento sob as vestes de moderno centro comercial, menos ainda se lembram dele nos idos de mil e oitocentos, arrombado e saqueado pelos franceses.

“Ora, andar”, pensou. Desde que a Inquisição lhe rasgou os textos, Vicente nunca mais viu a Igreja com bons olhos. Bem tentou distinguir a Devoção dos que tão mal a praticam, a Igreja não é isto, dizia de si para si. Porém, a certa altura, fartou-se. E achou espantosa aquela Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Claro que era escusado terem morto frei Miguel do Rosário, coitado, irmão Cantor da comunidade. A Revolução não é isto… a Igreja não é isto, a Revolução não é isto, o Islão não é isto, a praxe não é isto, porra, nunca nada é alguma coisa, é sempre tudo outra coisa.

A Fé move montanhas. O problema é que a Fé de uns move a montanha para um lado, a Fé de outros volta a pôr a montanha onde estava. E o Homem, a dada altura, começou literalmente a mover montanhas apenas com o seu engenho — o aforismo tornou-se-lhe estranho e, também por isso, a Fé perdeu-lhe uma boa parte do seu encanto.

“Os Crentes só aceitarão uma prova da inexistência de Deus se esta lhes for apresentada pelo Próprio”, pensou. A Fé é muito bonita enquanto monumento da criação humana mas monótona como tema de debate e inútil quando queremos resolver um problema prático como uma guerra ou quem deve gerir o Muro das Lamentações.

Cruzando o Largo, Gil Vicente preferiu voltar a concentrar-se no Garcia. Duas companhias numa só ensaiavam ali um dos seus textos. Um dos mais esmerados, sim, mas, lá está, um dos religiosos. Durante anos andou com ele pelos fundos das gavetas. Depois, quase desconfiado, viu uns estudantes de Coimbra pegarem nele. E olhai lá, que arrais infernal me saiu aquele Deniz-Jacinto! A partir daí, repetiram-no, quase até à exaustão. De quase-perdido, acabaria por tornar-se um clássico.

Quem diria! Pensou em Calvino, não o da Fé, o outro: “Um clássico é um livro que ainda não acabou de dizer tudo o que tem para dizer”. À custa de tanto lhe pegarem, ele próprio acabou por vê-lo com outros olhos. O enredo começara a parecer-lhe simplório, em especial quando o comparou com Shakespeare, uns meros cem anos depois. Mas depois apareceu Beckett e mais linear do que aquilo era difícil. Afinal, parece que até o mais simples dos seus textos tem uma modernidade insuspeita. “Isto está cheio de teatro!”, já dizia excitado o mesmo Deniz-Jacinto, a propósito da sua primeira peça. Gil Vicente condescendeu, lembrando-se do entusiasmo quase juvenil com que os escrevera: “Sim, todos foram feitos com alma, lá isso é verdade”.

Vicente gostava de ver aquela companha inventar novos sentidos para o seu texto. Por vezes, acontecia até ficar na dúvida quanto às suas próprias intenções ao escrever esta ou aquela fala. Em troca, achava graça ao espanto deles, à medida que os via decifrar o seu pensamento — certas imagens, certos raciocínios, pareciam-lhes impossíveis para uma mente do Séc. XV, criada num mundo sem cinema e sem efeitos especiais.

Ali, naquele teatro imenso, sentia-se em casa. Ao longo de quase trinta anos, A Escola da Noite e o Centro Dramático de Évora levaram à cena mais de vinte dos seus textos. No outro dia disseram-lhe “olha Vicente, se pudéssemos escolher uma personagem histórica para entrevistar, escolhíamos-te a ti. Não porque te conheçamos mal, mas porque te conhecemos bem. Já sabes o nosso lema: quanto mais se conhece, mais se ama”.

Sorriu, enquanto recordava o cumprimento. Já junto ao Garcia, olhou outra vez para o Largo, agora do ponto de vista oposto. “Cuidado com as voltas do Mundo, Mata-Frades, não vá algum alucinado dizer que um herege não merece toponímia”.

Estava em cima da hora para assistir a mais um ensaio. Junto à porta de serviço do teatro, Vicente apagou o cigarro, digitou o código e entrou.

 

Rui Valente
Director Técnico d’A Escola da Noite / Co-director de montagem do espectáculo “Embarcação do Inferno”

 

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