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Juan Mayorga: “nós, que fazemos arte, devemos apresentar o complexo como complexo”

Quinta-feira, Dezembro 22nd, 2011

Eva Queiroz de Matos entrevistou o autor de “Animais Nocturnos” para a revista Via Latina. Mayorga fala sobre o papel da arte: “Menos cultura significa menos ideias a circular e, portanto, menos consciência e democracia”.

Juan Mayorga (foto: David Ruano)

Juan Mayorga desafia-nos ao questionamento, fala-nos de uma Humanidade desumana, da actuação do poder e, claro, de teatro. É o último dramaturgo a vir até Coimbra no âmbito das Jornadas de Dramaturgia Espanhola Contemporânea. Lembram-se de falarmos com Paloma Pedrero? Agora, A Escola da Noite leva a cena “Animais Nocturnos”, do ex-matemático e filósofo cuja obra teatral está traduzida em mais de 20 idiomas. A história de um imigrante sem papéis, confrontado com autoritarismos na porta ao lado, toma conta do Teatro da Cerca de São Bernardo até sexta-feira, 23. De 5 a 29 de Janeiro há uma nova temporada – de quarta a sábado às 21h30 e ao domingo, às 16 horas

Diz escrever sobre injustiças. Quais são as que mais o tocam?

A temática do teatro é, desde sempre, a fragilidade do ser humano e a sua aspiração a uma vida boa, digna e livre. A violência que cometemos uns sobre os outros é uma temática eterna e inevitável. Dentro dessa violência, interessa-me especialmente, como criador teatral, formas não evidentes. Isso pode encontrar-se também em “Animais Nocturnos”.

Debruça-se sobre situações concretas a que se assiste em Espanha ou tendências mundiais?

Tenho tido a sorte de que a minha obra seja feita em vários lugares. Há 18 montagens de “Himmelweg”; “Hamelin” está agora no Brasil, na Argentina e no Equador; “A Tartaruga de Darwin” na Grécia; “A Paz Perpétua”, no México. Se isto ocorre é porque falo de questões que interessam a todos, mesmo nos textos que tenham uma referência local. É certo que em algumas obras trato em particular a história de Espanha, em “Himmelweg” tratei o Holocausto e em “Cartas de Amor a Stalin” a pressão soviética, mas o que procuro não é uma reconstrução histórica, é o universal que subjaz a isso.

Já viu esse esforço reflectido nalguma coisa?

A arte pode produzir um efeito poderoso sobre a consciência das pessoas, mas disperso. Brecht espantava-se com algumas das suas obras serem aplaudidas por indivíduos que tinham os comportamentos nelas denunciados. Não podemos desejar que uma obra transforme a sociedade, mas pode contribuir para o debate, criar ou destruir consciências. “Animais Nocturnos” fala de um homem com poder e outro sem posses. Os espectadores podem interrogar-se: em papéis de relevância académica, política, etc., como utilizam as suas posições de superioridade?

A acção que quer espoletar é sobre o público, portanto. Acha possível reacções por parte da política?

Penso como Kafka: do poder não posso esperar nada. Quando alguém acha que está a negociar com o poder, começa logo derrotado. A arte deve criticar o poder, não como única função. Deve fazer com que os espectadores, convocados à assembleia teatral, detectem as máscaras do poder. Muitas vezes, o poder não se mostra abertamente, mas debaixo de determinados disfarces.

Fala do teatro como uma assembleia. Em Espanha é uma forma de arte altamente participada?

Há o teatro que é puro entretenimento, as pessoas vão simplesmente para passar o tempo. Esse é, provavelmente, o teatro das massas. Mas há outro tipo de teatro, capaz de criar consciência, de oferecer distância e envolvência. Claro que há-de ser sempre entretenimento. Mas que seja capaz de fazer pensar. Pode fazê-lo dando-nos a ouvir a nossa própria linguagem. Ela é um meio de comunicação, mas também pode ser um meio de violência. O poder utiliza, por exemplo, eufemismos, de forma a tentar colonizar o discurso do outro. Não nos enganemos: o teatro que se dedica a isto é minoritário, mas pode ser muito influente. É o teatro necessário e urgente.

Não sofre crise de público?

Tal como em muitos outros lugares, há agora uma redescoberta do teatro. Na sua pequenez, mostra-se como um espaço onde se pode falar de coisas com uma certa liberdade. Se não pudéssemos fazer “Animais Nocturnos” aqui, podermo-lo-íamos numa sala de aula. Tínhamos o encenador, os actores e o texto. O teatro é extraordinariamente poderoso, porque o seu constituinte fundamental é o actor eloquente, o seu corpo. Se nos anos 80 havia a impressão de que o teatro perderia a batalha com o cinema, os audiovisuais, hoje, pelo contrário, entendemos o teatro como um espaço de liberdade.

Fala do carácter político do teatro, mas por oposição a um teatro partidário. Como os distingue?

Os partidos políticos tendem ao maniqueísmo, à simplificação e a reduções esquemáticas muitas vezes infantis, através da ridicularização do discurso do outro e do enaltecimento acrítico do próprio discurso. Se os partidos tendem a simplificar, a arte há-de procurar a complexidade. Não tem sentido fazer um teatro de defesa de interesses políticos.

Existe esse teatro?

Sim. Há um tipo de teatro que tenta, muito pouco interessante, a que se pode chamar “de esquerda”. Procura a identificação sentimental do espectador com a vítima: reconhecendo o poder monstruoso que a acurrala, alheio, sente-se inocente e feliz. É muito mais interessante que o espectador se sinta responsável. Um teatro que suspenda o espectador perante a pergunta pode ser mais útil do que fazer afirmações políticas óbvias.

Do que trata “Animais Nocturnos”?

É uma obra sobre a violência que um ser humano exerce sobre outro, aproveitando uma lei de imigração. Mas uma leitora disse-me que é uma obra sobre a amizade. O que acontece é que há um homem, o “Homem Baixo”, que quer que o “Homem Alto”, sobre o qual tem poder, um imigrante “sem papéis”, seja seu amigo. Isso vai provocar uma relação extremamente intensa, mas contraditória. Não é uma simples relação entre carrasco e vítima, nem o “sem papéis” tem um prazer masoquista. Ele vai procurar o seu próprio espaço. Torna-se uma relação explosiva e complexa.

Os nomes das personagens não reflectem a relação entre elas…

Há um paradoxo: o Homem Alto é o “sem papéis”. A obra é feita em vários países, há jogos distintos. Há sítios em que o “Homem Baixo” é o mais alto, por exemplo. Se lhes tivesse chamado Juan e Pedro já os tinha localizado como espanhóis. Escolhi um nome abstracto. Podiam ser “Magro” e “Gordo”.

Nas suas peças vemos o animal humanizado e o homem animalizado. Quais são as suas principais diferenças?

O animal humanizado, em cena, é uma representação do homem animalizado. Seres que mereciam ser tratados como homens são tratados como animais. Em “Animais Nocturnos”, num zoológico, o Homem Baixo diz ao Homem Alto: “caminha para ali”. E o Homem Alto caminha. “Agora para ali” e a situação repete-se, embora sempre lhe diga que o respeita e nunca o humilhará

Existem sempre os dois em simultâneo?

Acho que sim. “A Paz Perpétua” é uma obra sobre cães. Li uma declaração de um actor que dizia que eles, na realidade, não são cães, são homens que foram convencidos de que são cães. São homens a quem não deixam ser homens. Fazer falar os animais serve-me para representar a animalização dos seres humanos.

Para além do carácter político, o animal adquire um carácter poético. Representa o mesmo do que numa fábula, por exemplo?

Há uma extraordinária tradição, que começa nos gregos, se não antes, de reflectir sobre o ser humano, os seus vícios e a sociedades através dos animais. O meu teatro sobre animais tem a ver com essa tradição, mas está poderosamente influenciado por Franz Kafka. E Mikhail Bulgákov. Em Kafka há também personagens animais, mas há algo decisivo: uma interpretação possível da metamorfose. Se chamas cão a um homem, e todos estão de acordo em chamar-lhe cão, ele vai acabar por viver como um cão. Com Kafka dá-se um salto: as palavras podem provocar essa transformação mágica. A animalização do outro, embora que pela palavra, prepara o seu extermínio físico. A morte moral prepara a morte física. Em relação a Bulgákov, quero aludir à magnífica obra “Coração de Cão” – um médico vai colocando os órgãos sexuais de um homem num cão. Produz-se algo terrível. Tem tudo a ver com isto de que falámos.

Em entrevista aos Artistas Unidos, dizia que há direitos humanos, mas nem todos somos cidadãos. Qual entende ser a condição para isso?

Nunca se falou tanto de direitos humanos como neste momento, mas os direitos não são realmente humanos, são direitos associados a documentos, cidadanias. Isso não é compatível com a noção de direitos humanos universais, dos que somos donos pelo simples facto de nascer. Podem dizer-me que sou um demagogo. “O que é queres? Que toda a África venha para a Europa?”, podem perguntar-me. Mas nós, que fazemos arte, devemos, de forma modesta, apresentar o complexo como complexo. Não temos de oferecer soluções políticas, mas apresentar as contradições. Uma delas é esta: há políticas bem pensadas sobre os direitos humanos que na prática os negam. Os direitos são particulares e não universais. Utilizando a expressão de George Orwell, “todos somos iguais mas alguns são mais iguais do que outros”. Há uma noção de cidadania abstracta, ideológica, mascarada. Uma das nossas missões é desfazer essa máscara.

O texto tem o papel principal ou cabe ao corpo desvendar muitos sentidos?

Não aceito que haja uma dicotomia entre teatro de texto e teatro performativo. A palavra é muito importante, permite criar imagens, sobre as quais o espectador é soberano. Se te falar de Cristo a caminhar sobre as águas, na tua cabeça surge uma imagem formidável, a que nenhuma gestualidade se pode comparar. Uma imagem vale mais do que mil palavras, sobretudo se é uma imagem feita com palavras.

Atribui bastante importância à síntese. Como é que isso se aplica ao teatro, ao contar de histórias?

Cada vez que ouço uma obra minha, estou a trabalhar e sofrer ao mesmo tempo, a dizer que podia ter sido mais concreto. No teatro tudo é significativo, essencial, relevante. Mas a redundância é a morte do teatro. O teatro não pode reproduzir o ruído do mundo, tem de construir uma experiência poética. A linguagem tem de ser essencial, desengraçada. Nunca o consegui, incorro em redundâncias, mas aspiro a isso.

“Palavra de Cão” pode entender-se como uma segunda visão da obra de Cervantes. É uma coisa que faz recorrentemente?

Não. Nalguns casos há um trabalho de adaptação, sinto que posso continuar e a peça acaba tendo a minha própria autoria.

Fá-lo muitas vezes?

Depende de sentir onde o meu trabalho está acabado. Pensei que “Palavra de Cão” seria um texto “original”. Mas a certa altura, por razões de ética, já não pude manter o título de Cervantes; dizer que era uma versão de Juan Mayorga seria enganar o espectador. Mas tenho uma versão de Kafka que considero uma adaptação porque sinto que não fui suficientemente longe. No entanto, desejo voltar a esse material e ser levado por liberdades que agora não alcanço.

Edita muitas vezes também as suas próprias peças. Que alterações faz?

Vou descobrindo o que é o essencial. E as encenações ajudam. Por exemplo, “Cartas de Amor a Stalin” precisa cada vez menos da atmosfera da época, de detalhes. Vai-se pouco a pouco ouvindo a obra e tendo consciência de possíveis melhorias. É uma luta contínua. Isto gera alguns problemas com os tradutores, mas assim é a vida. É próprio do teatro que o texto evolua. Se um autor vê possibilidades de melhoria, deve fazê-las.

A sua obra está traduzida em mais de 20 idiomas. Em quantos já ouviu?

Muitos. Nunca em húngaro, búlgaro, nem grego. Já ouvi “A Tartaruga de Darwin” em coreano e foi muito interessante. É uma obra em que é muito importante a história da Europa do séc. XX e o espectador coreano não tem essa informação. Ouvir a obra noutra língua e ver outra tradição interpretativa é extraordinariamente rico para mim. Não há nada mais interessante para um autor do que ser surpreendido por uma encenação, que revela sentidos do texto que desconhecia.

É um autor que pensa muito, não começa logo a escrever. Quando é que passa então do pensamento para escrita? Não tem medo de se esquecer dele?

Trago sempre um caderno comigo, onde vou tomando notas. Como este [retira do bolso um bloco pequenino]. Grande parte deste material nunca será utilizado. Tenho aqui algum de Coimbra. Vi que, debaixo da extraordinária Biblioteca Joanina, há uma prisão académica. Jamais tinha imaginado um lugar assim! É um lugar muito rico teatralmente, onde estudantes e professores eram presos. É muito interessante, mas muito provavelmente nunca vou chegar a escrever sobre isso; e mesmo assim anoto. Isto não é uma obrigação intelectual. Às vezes começo a pensar numa obra que desejo escrever e vejo a ideia muito clara. Em “Cartas de Amor a Stanlin” comecei a anotar imediatamente ideias em relação à obra e a estrutura apareceu muito rapidamente. Contudo, escrevi recentemente “Os Jugoslavos”, obra ainda não editada, cujo início estava claro na minha cabeça, mas demorei anos a encontrar a maneira de lhe dar forma. Muitas vezes o processo de criação é lento.

O teatro relaciona-se muito com a memória histórica…

Permite que todos os seres humanos, de qualquer tempo, sejam contemporâneos. No momento em que um actor é Júlio César, Júlio César torna-se, de certa forma, nosso contemporâneo. É extraordinário. Não procuro livros de História à procura de argumentos. Eles invadem-me quando estou a ler.

Era da matemática e da filosofia. Como é que viajou para o teatro?

Tardei a lá chegar. Quando era pequeno, o meu pai lia romances e ensaios em voz alta – aí está a origem da confiança na palavra como criadora de mundos. Aos 16 anos, vi “Dona Rosita, A Solteira”, de García Lorca, com uma atriz magnífica capaz de representar diferentes idades da vida de uma mulher. Foi revelador o poder do teatro. Interessei-me muito desde aí e tornei-me espectador. Aos 16 anos já escrevia teatro, tal como romances e poesia, mas com 21 ou 22, já a estudar filosofia, escrevi uma obra chamada “Sete Homens Bons” e apresentei-a num concurso. Ganhei um segundo prémio, o que me incentivou a continuar. Pouco a pouco, e cada vez mais, fui comprometendo a minha escrita com o teatro.

O poder do teatro… O que vê faltar aos outros géneros literários?

Sou leitor de romances. Amo o romance e a poesia. Mas o teatro atrai-me muito especialmente porque é maravilhoso escrever uma palavra que vai ser pronunciada. E de forma distinta, por distintos actores. O intérprete é mais do que executor. É um artista que vai deslocar a palavra para outro lugar. Isso é muito valioso. Também me orgulha quando um leitor me diz que apreciou a minha obra. Mas o teatro tem a capacidade de reunir os actores em torno do texto e os espectadores em torno dos actores.

O dramaturgo não é, portanto, o único autor. Contacta frequentemente com encenadores e actores?

Sim. Em Madrid não é raro assistir a distintos momentos e dialogar com o encenador. Inclusivamente edito o texto, a partir dos ensaios. “Animais Nocturnos” é um bom exemplo, mas há muitos mais. Conheci aqui António Augusto Barros [director artístico d’A Escola da Noite e encenador de “Animais Nocturnos”] e parece que já o conheço há muito tempo. Temos conversado muito e vamos fazê-lo ainda mais. O encenador e os actores são leitores excelentes e privilegiados. Podem estar especialmente preparados para encontrar contradições ou possíveis desenvolvimentos das personagens. Às vezes são os corpos que desvendam significados. Estou muito atento. Quando vi “Animais Nocturnos” em Itália, descobri uma simpatia do Homem Baixo que não tinha escrito propositadamente, nem nunca reparado.

Como olha para a adaptação das peças para o cinema?

“O Rapaz da Última Fila” está a ser gravado e tenho a certeza de que vai ser um bom filme. E “Himmelweg” provavelmente também. Mas o teatro é estraordinariamente livre porque não precisa da reconstrução física das personagens, espacial. É elementar ao invocar a imaginação dos espectadores. Diz-se que o teatro é como os mapas – são sempre mais interessantes do que uma fotografia. Num mapa capta-se o essencial.

Em Portugal assistimos a um certo conflito entre a cultura e o poder. Esse é um tema que o toca também?

É um tema que de certa forma aparece em “Animais Nocturnos”. “Cartas de Amor a Stanlin” é sobre a impossível amizade entre cultura e poder. O poder tenta usar a cultura e a cultura está tentada a ocupar lugares que o poder lhe oferece. Mas ela deve ter uma posição crítica, de vigilância do poder. Menos cultura significa menos ideias a circular e, portanto, menos consciência e democracia. Todos os cidadãos deviam estar interessados.

E como avalia esta realidade em Espanha?

Estamos a viver tempos escuros, mas cheios de esperança. Vivemos um tempo de redução, mas também de uma contestação que não esperávamos. Parecia que as pessoas estavam resignadas, mas estão indignadas. Caímos numa situação paradoxal extremamente interessante: por um lado, há um discurso de despolitização; por outro, uma redescoberta da política. Muitas pessoas estão a aperceber-se de que existem discursos muitos falaciosos.

Mas como se posicionam os agentes culturais?

Temos de desconfiar deles [dos políticos], mas lembremo-nos que Miguel Ângelo pintou o tecto da Capela Sistina mandado pelo Papa. Não quer dizer que não seja preciso negociar, mas há que aproveitar o espaço que nos dão. Não acho interessante um gesto anticultural, anti-sistema e anti-sistemático. Há que lutar com uma certa astúcia.

Na entrevista aos Artistas Unidos disse que não se devia julgar as personagens. Se elas representam injustiças, julgá-las não é o objectivo?

Há inevitavelmente uma posição moral do autor em relação aos seus personagens. Autor, encenador e actores devem tentar defender e criticar as personagens. Tentar procurar as suas razões, mostrar o seu lado mais forte e ver até que ponto podem ser atractivas e provocar a empatia do espectador, incluindo as mais perversas. Por outro lado, também a personagem inocente, honrada e heróica deve ser criticada. Não quer dizer que as equilibremos, mas devemos sempre procurar a complexidade. Há que criar reacções de discussão. Se a personagem for um idiota e disser simplesmente que os negros têm de morrer, marcarás distância dela; isso não terá a capacidade de te mobilizar, de te gerar um problema.

Em “Cartas de Amor a Stalin”, Bulgákov diz a Estaline: “Como posso escrever canções a um país que para mim é uma prisão?”.  O Juan escreve sobre injustiças, é isto que sente?

Acho que mudei. Não escrevo o que escrevia há 20 anos. Há obras com uma luz e uma vontade de vida que não apareciam em anteriores. Bulgákov ama a Rússia e gostaria de escrever-lhe uma canção de amor, mas a Rússia onde vive é opressiva, uma prisão. Estaline precisa de um poeta que escreva uma canção de amor ao país e Bulgákov precisa que ele lhe dê liberdade para isso. Bulgákov é um satírico da sociedade russa, precisamente porque amava muito a Rússia. A crítica e a sátira também são formas de amor. Uma forma de amar um país ou a Humanidade é criticá-los ou, pelo menos, dizer a verdade. Dizer a verdade é uma forma de amor.

 

encontro

Quarta-feira, Dezembro 21st, 2011

O teatro para mim é, fundamentalmente, encontro. Eu escrevo um texto dramático e a proposta que faço é de um acontecimento social, porque quero que as minhas palavras sejam ditas perante um público. O que significa que, quando escrevo, provoco dois tipos de encontros: o dos atores, em torno do texto, e o do público, que vai completar uma experiência poética com os atores.

Juan Mayorga, na entrevista ao Diário As Beiras

Ontem à noite houve conversa no Bar do Teatro, a seguir ao espectáculo. “Animais Nocturnos” está em cena até sexta-feira, sempre às 21h30.

Junte-se a este encontro!

 

Juan Mayorga: “Estes cortes vão ter grandes custos em termos da democracia”

Terça-feira, Dezembro 20th, 2011

Juan Mayorga, autor de “Animais Nocturnos”, fala do seu teatro, de Coimbra e da política cultural em Espanha e em Portugal. Leia a entrevista ao Diário As Beiras, conduzida pela jornalista Lídia Pereira.

Juan Mayorga (foto: Gonçalo Manuel Martins / Diário As Beiras)

Portugal e Espanha. Dois povos próximos. Nós conhecemo-nos bem?

Tenho a certeza que não. Ainda assim, quando estamos em Portugal sentimo-nos em casa. É um abuso de linguagem dizer que Portugal, relativamente a Espanha e aos espanhóis, é um país estrangeiro. É certo que temos dois Estados, mas há uma afinidade óbvia entre as pessoas. É evidente que partilhamos muitas coisas. Contudo, há uma ignorância profunda.

É uma ignorância mútua?

Do lado de Espanha sim; relativamente a Portugal, não sei. Mas tenho a certeza que relativamente à língua, por exemplo, há uma parte da população portuguesa que conhece a língua castelhana, que está informada sobre o que acontece em Espanha muito melhor do que acontece em Espanha relativamente a Portugal. Quer dizer, a informação relativa a Portugal, em qualquer campo cultural, não passa para Espanha. Ou não passa tanto como devia. Iniciativas como esta que A Escola da Noite está a realizar têm um papel muito importante. Desde logo, graças à Escola da Noite, passam a ser conhecidos por um conjunto de profissionais e gente do teatro em Portugal alguns autores espanhóis.

E há ainda os contactos pessoais que são muito importantes?

Exato. Para lá desse conhecimento, promovem-se contactos pessoais que podem ter grande importância no futuro. Eu vou levar destes dias em Coimbra nomes de autores que não conhecia, textos que nunca tinha lido, grupos de teatro portugueses, não apenas de Coimbra, mas também de Lisboa, do Porto e de Braga. E toda esta informação será transmitida por mim quando regressar ao meu espaço, às pessoas com quem trabalho. O teatro, que tem um enorme dinamismo e uma grande permeabilidade, é o meio ideal para se promover este encontro.

O campo da cultura, do teatro, da dramaturgia, pode facilitar este encontro?

Por um lado, há o evidente problema da língua, do idioma. Mas, por outro lado, há muitas afinidades imediatas. Por exemplo, eu não conhecia os responsáveis d’A Escola da Noite e, numa tarde, pareceu-me conhecê-los de toda a vida. Porque são muitas as coisas que nos unem, temos tantos autores, tantas grandes obras em comum, tantos mestres do teatro a quem respeitamos, que a comunicação acontece naturalmente e de imediato. Eu comentava com Pedro [Rodrigues] e António [Augusto Barros] que considero escandaloso, embora facilmente reparável, o facto de em Espanha se acolherem mais facilmente e com maior frequência companhias russas do que portuguesas. A proximidade, neste caso, paradoxalmente, pode contribuir um pouco para o afastamento, porque não existe o glamour que pode ter o teatro russo. E isto, há que corrigi-lo imediatamente.

O que é que defende para fomentar essa aproximação?

Penso que seria desejável e até normal que os espetáculos ibéricos circulassem neste nosso território. Seria desejável e acredito que não fosse especialmente complicado. Depois há autores, como Abel Neves, a quem tive a sorte de conhecer há alguns anos, ou Vieira Mendes e outros, que deveriam ser conhecidos e ser apresentados nos palcos em Espanha, como já se abrem os palcos portugueses a alguns autores espanhóis. Eu, por exemplo, vou ter “Animais noturnos” em Coimbra e “O rapaz da última fila”, em Lisboa, com os Artistas Unidos. E os Artistas Unidos já tinham sido muito importantes para o meu trabalho porque publicaram alguns textos que circularam em Portugal e até no Brasil.

A publicação em cada um dos países é fundamental?

É muito importante. Como é importante fomentar o trabalho desses extraordinários introdutores culturais que são os tradutores. Os tradutores, são figuras fundamentais neste diálogo de que estamos a falar. Além do mais, os tradutores costumam ser muito generosos, qualquer incentivo que se lhes dê, será respondido com a maior generosidade. Simplesmente, coisas tão elementares como a ajuda à publicação e distribuição dos textos não têm acontecido. É certo que estamos em momento de cortes, mas estamos a falar de quantidades muito pequenas, tendo em conta o rendimento cultural e económico que pode gerar uma aposta desta natureza. Por exemplo, o facto de serem publicados em Espanha autores portugueses, faria com que se reforçasse a imagem de Portugal como nação de cultura e de espírito. E isso é muito importante nos tempos em que vivemos.

É importante que as companhias possam desenvolver iniciativas que promovam o conhecimento mútuo. Em Espanha, há companhias a encenarem autores portugueses?

Tem toda a razão quando fala das companhias. Eu acredito que as instituições não devem liderar, antes devem acompanhar e apoiar essas iniciativas. É muito mais interessante que seja a gente do teatro que se proponha a estabelecer este contacto, porque isso é muito mais produtivo a longo prazo. Por exemplo, A Escola da Noite apresentou cinco textos meus, que vão circular entre os atores, que os vão trabalhar, que vão ser ouvidos pelas pessoas no teatro. E isto tem um efeito muito mais produtivo do que uma iniciativa organizada por burocratas ou políticos, para a qual os atores e os encenadores tenham sido convidados, mas a que podem não aderir de forma tão sincera. Em Espanha, companhias semelhantes à Escola da Noite, estão a fazer um trabalho de divulgação de dramaturgia estrangeira muito importante, de onde se destaca a Sala Beckett, em Barcelona. Ainda assim, devo confessar com vergonha, que não recordo qualquer iniciativa concreta para a difusão do teatro português, de forma exclusiva, em Espanha. Não conheço nenhuma iniciativa para apresentar a nova dramaturgia portuguesa, à semelhança desta que está a acontecer em Coimbra relativamente à dramaturgia contemporânea espanhola.

“Os escritores devem olhar o que os outros não veem”

Um dramaturgo é um observador privilegiado do que somos. O que é que já conhece de Coimbra?

Eu já conhecia Coimbra, porque a primeira viagem que fiz com a minha mulher, então ainda noiva, foi a Portugal – que sempre foi um lugar pelo qual eu senti um especial afeto, sem retórica –, viajamos de comboio e visitamos Coimbra, claro, uma cidade mundialmente conhecida. Estive em Coimbra então, em 1988, e depois, de novo, em 2003, já com um filho. Poucos dias antes de voltar, agora, comentei com um amigo, Reyes Mate, um importante filósofo espanhol, que vinha a Coimbra, e ele disse-me para não deixar de visitar a Biblioteca Joanina [da Universidade de Coimbra], que nunca tinha visitado. Fui ver a Biblioteca Joanina, que me parece ser um dos lugares mais impressionantes do mundo, parece-me um lugar para enlouquecer, uma festa do livro, formidável. Também visitei a sala dos Capelos, a Capela da Universidade, pude caminhar pela velha catedral, em Santa Cruz… Coimbra é uma cidade belíssima. Quanto às pessoas, se os escritores devem olhar o que outros não veem, também devemos ser modestos porque às vezes os intelectuais, os escritores em particular, têm uma grande tendência para teorizar sobre os lugares que visitam, quando, para isso, é necessário tempo e vontade de olhar e escutar a memória e o já esquecido em cada cidade. O que eu encontrei em Coimbra, para já, foi a mesma hospitalidade, a mesma afabilidade que costumo encontrar em Portugal.

É bom ter textos seus em palcos portugueses?

Eu escrevo por duas razões: primeiro, porque me sinto feliz a contar histórias, a explorar a minha língua, a imaginar situações, a examinar a vida real ou as vidas possíveis. Mas também me sinto feliz a escrever para teatro, porque me permite criar ocasiões de encontro. O teatro para mim é, fundamentalmente, encontro. Eu escrevo um texto dramático e a proposta que faço é de um acontecimento social, porque quero que as minhas palavras sejam ditas perante um público. O que significa que, quando escrevo, provoco dois tipos de encontros: o dos atores, em torno do texto, e o do público, que vai completar uma experiência poética com os atores. Eu tenho a sorte de ter peças a serem encenadas em diferentes lugares do mundo, em Portugal, nos EUA, no Canadá, no Brasil, Argentina, México e Equador, em Espanha, Grécia, Roménia e Ucrânia. Claro que não vou ver a maior parte destas montagens, mas pensar que as pessoas se reúnem em torno do que eu escrevo é uma felicidade imensa. Porque, o mais importante é provocar uma experiência coletiva, um encontro entre as pessoas, de forma modesta, sem dar lições, simplesmente olhando de perto os seres humanos, como disse o grande mestre Tchekov.

Como é que um dramaturgo olha de perto este momento da Europa?

A chamada crise revela, no meu entender, que a ordem social que nós criamos é extraordinariamente ineficaz, mas também injusta e, inclusivamente, imoral. Isto já era assim há 10 anos, mas agora tornou-se escandalosamente visível. Em Espanha, 45 por cento da população jovem está desempregada. E isto é escandaloso, porque estamos a impedir que todos estes jovens, no seu momento de maior energia e capacidade mental e física, não possam contribuir. E isto é mau para eles e é mau para a sociedade. Mas a injustiça é flagrante, porque o desemprego leva a que muitas pessoas tenham as maiores dificuldades em viverem uma vida digna. Claro que o que está a acontecer na Europa é apenas uma parte de uma ordem mundial que continua a especular com a fome de milhões de pessoas, quando se permite que se joguem nos mercados bolsistas as colheitas de cereais que depois provocam a fome em África. Isto é escandalosamente vergonhoso. E não é demagogia, está a acontecer e nós deixamos que aconteça. Ao mesmo tempo que, agora na Europa, os cortes tremendos nos salários, na saúde, na educação e na segurança social provocam grande sofrimento e empobrecem grandes massas da população. E tudo isto é simultâneo à informação que nos chega diariamente a dar conta de gente que enriquece, com enormes lucros, não pelo seu talento ou pelo seu trabalho, mas simplesmente porque pertencem a uma espécie de aristocracia social, porque vivem e sempre viveram próximo ao poder. E isto é, simplesmente, inaceitável, é insuportável. E parece-me que estes cortes vão, muito brevemente, ter grandes custos em termos da democracia.

Animais Nocturnos: segunda semana com campanhas de Natal

Segunda-feira, Dezembro 19th, 2011

Miguel Lança e Maria João Robalo, Animais Nocturnos (ensaio)

A temporada de “Animais Nocturnos” prossegue esta semana em Coimbra, no Teatro da Cerca de São Bernardo, de terça a sábado. Entre 20 e 23 de Dezembro, A Escola da Noite organiza duas campanhas especiais, a propósito do Natal.

A peça, do dramaturgo espanhol Juan Mayorga, desenvolve-se a partir da chantagem exercida sobre um imigrante sem-papéis numa cidade dos nossos dias. O autoritarismo e a discriminação, mas também a solidão e as dificuldades de comunicação e de partilha de afectos são alguns dos temas abordados pelo espectáculo, num registo que propositadamente evita o moralismo e confronta o espectador com as suas próprias “verdades” e contradições.

Quatro personagens, nomeadas apenas pela sua estatura física, dão corpo a uma inusitada e aparentemente irracional situação de escravatura, marcada pelo medo e por uma violência latente. O Homem Baixo, vizinho de cima do Homem Alto, descobre que este vive em situação ilegal e aproveita-se disso para exercer sobre ele a sua autoridade, alterando radicalmente as suas vidas.

A mais recente produção da companhia de Coimbra estreou no passado dia 15 e mantém-se em cena, nesta primeira temporada, até 23 de Dezembro, sexta-feira, sempre às 21h30. Ao longo desta semana, o público poderá usufruir, para além dos descontos habituais praticados pel’A Escola da Noite, de duas campanhas especiais, inspiradas pelo Natal: “Jantar + Teatro”, que inclui uma refeição no restaurante “O Pátio” e o bilhete para o espectáculo por apenas 13 Euros (ideal para grupos e jantares de Natal, mas aberta também a espectadores individuais e famílias), e o “Vale Teatro”, que permite aos espectadores da companhia oferecer uma prenda original – bilhetes para a temporada de Janeiro deste espectáculo.

ANIMAIS NOCTURNOS

texto Juan Mayorga tradução António Gonçalves encenação António Augusto Barros interpretação Maria João Robalo, Miguel Lança, Miguel Magalhães, Sofia Lobo cenografia António Augusto Barros, João Mendes Ribeiro figurinos Ana Rosa Assunção desenho de luz Danilo Pinto sonoplastia Eduardo Gama

M/12 > 90? (aprox.)

Coimbra, Teatro da Cerca de São Bernardo

15 a 23 de Dezembro de 2011

terça a sábado, 21h30; domingo, 16h00

5 a 29 de Janeiro de 2012

quinta a sábado, 21h30; domingos, 16h00

informações e reservas:

239 718 238 / 966 302 488

geral@aescoladanoite.pt

Animais Nocturnos: comentários (III)

Domingo, Dezembro 18th, 2011

Maria João Robalo e Miguel Magalhães, Animais Nocturnos (ensaio)

Fui ontem ver “Animais Nocturnos”, a peça de Juan Mayorga que A Escola da Noite tem em cena. Como uma das personagens, fiquei a noite sem dormir, às voltas com a peça. A história de um imigrante sem papeis, chantageado por um “cidadão nacional” de um qualquer dos nossos países, para exercer os afectos que já somos incapazes de trocar. Livres ou escravos. Ou sempre escravos. Ou sós. Como a mulher que dança e a mulher que parte, ou o dominador e o dominado que devolve ao primeiro um sonho falso. Fiquei entre Mayorga e Kafka. Não deixem de ver.

Catarina Isabel Martins, FB, 18/12/2011

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